Angelo Prata de Carvalho

Colunista

Angelo Prata de Carvalho

Advogado sócio de Ana Frazão Advogados. Doutor e Mestre em Direito pela Universidade de Brasília. Professor voluntário na Faculdade de Direito da UnB. Vice-líder do Grupo de Estudos Constituição, Empresa e Mercado (GECEM/UnB).

Os fantasmas se divertem

As aparições espectrais da Análise Econômica do Direito no Antitruste

Angelo Prata de Carvalho

Esta coluna retorna após uma pausa mais longa do que o esperado – devida à imperiosa conclusão de minha tese de doutorado –, porém a tempo das celebrações do Halloween, com direito a fantasias criativas e alguns filmes de terror. O título deste artigo de retorno do umbral em que me encontrava é uma homenagem ao clássico filme de Tim Burton, que retrata o dilema de um casal recém-desencarnado que se vê às voltas com seu novo papel de almas penadas. Ao verificarem a dificuldade do cotidiano além-túmulo, o casal de assombrações invoca o espectro ancestral conhecido como Beetlejuice, que surge para resolver problemas com grande habilidade quando seu nome é pronunciado por três vezes.

Beetlejuice é a solução para problemas de difícil resolução que, porém, pode ser invocado muito facilmente – basta pronunciar três vezes o seu nome. No entanto, uma vez invocado, Beetlejuice dificilmente irá embora, ainda que suas soluções não sejam as mais adequadas para os problemas concretos (até porque Beetlejuice não é deste mundo). Isso porque Beetlejuice apenas conhece o mundo dos mortos, surgindo para o mundo dos vivos apenas quando invocado. Em Os fantasmas se divertem, porém, chama a atenção a visão de Lydia, que, apesar de estar viva, por ter lido um “Manual para os recém-falecidos”, consegue enxergar a interagir também com os fantasmas que assombram sua casa.

Assim como Beetlejuice aguarda ansiosamente para que alguém pronuncie seu nome por três vezes, a Análise Econômica do Direito tem se apresentado como um conjunto de estruturas analíticas aparentemente bem construídas que parecem surgir sempre que alguém menciona o Direito da Concorrência (e uma vez só já basta). Até por se tratar de ramo do Direito Econômico, não são raras as alusões ao Direito da Concorrência como o espaço por excelência da aplicação da Análise Econômica do Direito – que, por mais que batalhe constantemente pela sua consagração nas demais disciplinas jurídicas, estaria relacionada de maneira quase óbvia com o Antitruste, já que, no fim e ao cabo, estamos lidando com a economia e precisamos socorrer-nos de análise econômica.

Por um conjunto de acidentes históricos, o Direito da Concorrência passou a ter a sua metodologia associada diretamente a abordagens econômicas de inspiração neoclássica, tributárias da chamada Escola de Chicago, como se a análise da legalidade pudesse ser reduzida a cálculos de eficiência, assim abandonando qualquer outro parâmetro valorativo diverso da alocação eficiente de recursos (não raro ocultada por detrás do argumento do bem-estar do consumidor, fábula articulada inicialmente por Robert Bork). Esta compreensão, porém, é marcada pela sua fantasmagoria, na medida em que não deixa de ser uma reverberação do Antitruste norte-americano – que parte de premissas teóricas, metodológicas e jurídico-culturais radicalmente distintas – puxando os pés do Direito da Concorrência brasileiro durante o sono.

A substituição de análises jurídicas por análises econômicas – de tal forma que esta última verdadeiramente passa a arrogar-se de juridicidade, requisito necessário para que a decisão econômica se torne imperativa – é, na verdade, manifestação do ectoplásmico caso Sylvania (1977), exemplo lapidar (que insiste em deixar sua lápide) da adoção, pela Suprema Corte dos Estados Unidos, da distribuição eficiente de recursos como parâmetro de juridicidade no Antitruste. Nos Estados Unidos, a adoção das metodologias da Escola de Chicago veio acompanhada da consagração de ideologias econômicas fundadas na valorização do big business e da própria concentração dos mercados, que não demorou a redundar em efeitos econômicos deletérios dificilmente exorcizáveis da realidade concreta, na medida em que serviram para consolidar posições dominantes praticamente inquebrantáveis.

Evidentemente que não se está aqui pontificando a extirpação de dados econômicos das metodologias do Direito da Concorrência ou mesmo do fechamento do direito a abordagens multidisciplinares – posição que seria um verdadeiro contrassenso até mesmo diante da ideia de ordem econômica constitucional. O que se combate é a identificação da análise quanto à legalidade de condutas de agentes econômicos à luz do Direito da Concorrência com análises econômicas centradas na noção de eficiência. Isso porque não é a eficiência o valor fundamental que orienta a aplicação do Direito da Concorrência no contexto brasileiro, que encontra fundamento constitucional nos incisos do art. 170 da Constituição Federal. Verificar se uma conduta ou um ato de concentração é eficiente não pode, nesse sentido, consistir no fim da análise jurídica, mas em um dentre vários elementos a serem levados em consideração para a verificação da legalidade da conduta ou do ato.

Mais enganosa ainda é a compreensão de que o emprego de análise econômica, notadamente sob perspectiva ortodoxa, teria o condão de emprestar ao direito caráter de tecnicidade e, por conseguinte, de correção. Tal ilusão se coloca especialmente diante da frequente tentativa dos porta-vozes da análise econômica do direito de diminuir a importância das metodologias tipicamente jurídicas, não raro reduzindo-as a meros expedientes retóricos sem qualquer conteúdo técnico, na medida em que operam por intermédio da análise hermenêutica de um ordenamento com textura aberta.

Em que pese a diversidade dos sistemas jurídicos, o recrudescimento da Escola de Chicago nos Estados Unidos e a propagação das conclusões do caso Sylvania exerceram grande influência sobre o Direito da Concorrência brasileiro, que comumente replica as mesmas premissas lá adotadas para um ordenamento pautado em uma ordem econômica constitucional dotada de valores próprios. Produz-se, com isso, uma ideologia ainda mais arraigada na exploração de dados econômicos e de cálculos de eficiência como se fossem a própria análise jurídica, na medida em que os parâmetros de controle de legitimidade aplicáveis ao caso Sylvania (isto é, a superação do precedente e a rediscussão de suas premissas) e mesmo a superação de entendimentos antigos não parecem aqui reverberar com proporcional intensidade.

O entendimento padrão passa a ser – para manter as referências ao Dia das Bruxas – transilvânico, tendo por principal presa os valores que orientam a ordem econômica constitucional brasileira. No entanto, ao transpormos as finadas compreensões norte-americanas a respeito dos propósitos e mesmo das metodologias aplicáveis ao Direito da Concorrência, nem teremos o potencial de replicar algum resultado econômico positivo (para quem quer que seja) que possa ter resultado da difusão dos ideais de Chicago nos Estados Unidos, e muito menos seremos capazes de dar concretude aos objetivos da Constituição de 1988, assim perenizando a nossa dependência. Com isso, o mencionado entendimento transilvânico pode até mirar em Drácula ou Lestat, mas invariavelmente acerta em Bento Carneiro, o Vampiro Brasileiro, que vem do aquém do além, da donde veve os mortos.

Repositório

Os fantasmas se divertem: As aparições espectrais da Análise Econômica do Direito no Antitruste. WebAdvocacy. Brasília, DF. Coluna de Angelo Prata de Carvalho. 26 de outubro de 2023

No paraíso dos conceitos econômicos. WebAdvocacy. Brasília, DF. Coluna de Angelo Prata de Carvalho. 02 de fevereiro de 2023.

Sentado à beira de um caminho que não tem mais fim. O Antitruste que precisa lembrar que existe. WebAdvocacy. Brasília, Dr. Coluna de Angelo Prata de Carvalho. 25 de novembro de 2022.

O fim da história do Direito da Concorrência. WebAdvocacy. Brasília, DF. Coluna de Angelo Prata de Carvalho. 07 de outubro de 2022.

O califa está de olho no decote dela: as implicações do caso Alibaba para a concorrência em mercados digitais. WebAdvocacy. Brasília, DF. Coluna de Angelo Prata de Carvalho. 06 de Julho de 2022.

Se não têm concorrência, que comam brioches. Do horror ao populismo ao horror ao pobre no Direito da Concorrência. WebAdvocacy. Brasília, DF. Coluna de Angelo Prata de Carvalho. 10 de junho de 2022.

Nós, que aqui estamos, por vós esperamos. As premissas da teoria do direito como parâmetros de controle para introdução da teoria econômica no campo jurídico. WebAdvocacy. Brasília, DF. Coluna de Angelo Prata de Carvalho. 01 de junho de 2022.

Entre Eros e Tanatos: da ordem econômica constitucional à morte do antitruste. WebAdvocacy. Coluna de Angelo Prata de Carvalho. Janeiro de 2022.

Sham litigation e a importância do desenvolvimento de parâmetros para o abuso de petição no direito brasileiro. WebAdvocacy. Brasília, DF. Coluna de Angelo Prata de Carvalho. 06 de dezembro de 2021.

Quosque tandem Robert Bork abutere patientia nostra? WebAdvocacy. Brasília, DF. Coluna de Angelo Prata de Carvalho. 04 de novembro de 2021.

Benjamin Shieber e os mitos fundadores do Direito da Concorrência brasileiro. WebAdvocacy. Brasília, DF. Coluna de Angelo Prata de Carvalho. 26 de agosto de 2021.

Os ventos do norte não movem moinhos? O Direito da Concorrência brasileiro diante das transformações do Antitruste norte-americano. WebAdvocacy. Brasília, DF. Coluna de Angelo Prata de Carvalho. 2021.

O controle empresarial externo no Direito da Concorrência. WebAdvocacy. Brasília, DF. Coluna de Angelo Prata de Carvalho. 15 de junho de 2021.