Polyanna Vilanova & Henrique Muniz

O Conselho Administrativo de Defesa Econômica (“Cade”) é o único órgão do Poder Executivo com competência para condenar agentes econômicos pela prática de cartel, isto é, consiste na única e última instância de todo o Poder Executivo competente para determinar o pagamento de multas e outras penas em virtude da prática desse tipo de ilícito. Não obstante, ainda que as decisões do Conselho possam ser objeto de ação anulatória judicial, identifica-se uma crescente deferência do Poder Judiciário às decisões do Cade, haja vista a expertise técnica deste último e a necessidade de equilíbrio entre os poderes constituídos.

Tendo em conta a importância da atuação do Cade e a capacidade de produção de efeitos das suas decisões na sociedade, é possível se afirmar que a autarquia antitruste se preocupa com a unificação da sua jurisprudência quanto ao padrão de prova necessário para a condenação de cartéis? Identifica-se certa previsibilidade nas decisões sobre o tema?

Essa discussão possui extrema relevância, visto que, em casos de cartel, a comprovação do acordo colusivo entre concorrentes é etapa essencial para a configuração do ilícito investigado, uma vez que não há extenso debate sobre a ilicitude da prática em razão do entendimento majoritário no direito antitruste de que cartéis são ilícitos per se[1].

Logo, a valoração do conjunto probatório disponível nos autos (o valor conferido pelo julgador a cada tipo de prova no caso concreto) e o standard probatório (padrão de prova apto a ensejar a condenação em razão da referida infração à ordem econômica) não são aspectos triviais da análise do Cade em processos administrativos envolvendo cartéis.

Isso porque o sistema brasileiro adota o livre convencimento motivado, também denominado de “persuasão racional”, “segundo o qual o julgador deve apreciar as provas para formar seu convencimento sobre a veracidade dos fatos, atendo-se àquelas que julgar mais convincentes[2]”, ainda que limitado pelo dever de motivação clara e racional de seu convencimento[3].

Dessa forma, o padrão probatório se relaciona intimamente ao sistema de valoração das provas e à subjetividade (ainda que motivada) dos julgadores, o que se soma às oscilações decorrentes da natural alteração na composição dos órgãos colegiados encarregados de proferir decisões, como é o caso do Tribunal Administrativo do Cade.

Muito embora a jurisprudência do Cade seja uníssona, independentemente das diversas composições do seu Tribunal, quanto à necessidade de um conjunto probatório “suficientemente forte e robusto” para condenação de cartéis, conforme extensa análise de casos do Guia de Recomendações Probatórias para propostas de Acordo de Leniência[4], as controvérsias surgem quando se está diante de um acervo probatório formado apenas por provas indiretas ou unilaterais, resultando em diferentes posicionamentos quanto às hipóteses em que as provas indiciárias e circunstanciais são capazes, ainda que de forma indireta, de constituir um conjunto suficientemente robusto para gerar o convencimento por parte da autoridade julgadora no sentido da configuração do ilícito.

A discussão acerca da possibilidade de utilização de provas indiretas para condenações no âmbito do Cade é relativamente recente e remonta à década passada[5].

O precedente considerado pela doutrina como leading case no uso de conjunto probatório exclusivo de provas indiretas para formação de convicção de condenação é a decisão do Processo Administrativo nº 08012.001273/2010-24, em que o colegiado à época condenou, por unanimidade, o cartel dos aquecedores no ano de 2015.

De lá para cá, são recorrentes as discussões acerca do padrão probatório e provas indiretas nos julgamentos do Cade em virtude da ausência de previsão legal de atribuição de um valor determinado a uma prova, haja vista a adoção do sistema do livre convencimento motivado pelo ordenamento jurídico brasileiro. No entanto, os julgamentos desses casos recorrentemente dividem opiniões, impossibilitando a identificação de um posicionamento uniformizado capaz de gerar previsibilidade ao jurisdicionado.

Nesse cenário, a possibilidade de se identificar valorações semelhantes a provas parecidas em casos diferentes ganha extrema relevância para garantir a segurança jurídica aos investigados por supostas práticas anticompetitivas. Isto é, a adoção justificada de critérios já utilizados em outros julgados, tal como ocorre no sistema Common Law de vinculação pelos precedentes, se faz necessária para conferir consistência jurisprudencial à autarquia antitruste e para gerar certa previsibilidade para o julgamento de um conjunto probatório.

A incorporação de institutos de origem anglo-saxã permeados pelo sistema de Common Law ao direito administrativo brasileiro foi estabelecida no ordenamento jurídico nacional. Inclusive, tais institutos já teriam aplicabilidade, em razão do disposto no artigo 927, I a V, do CPC. Contudo, tal aplicabilidade fica evidente com a previsão do artigo 30 da Lei nº 13.655/2018 (Lei da Segurança para a Inovação Pública), de acordo com o qual “as autoridades públicas devem atuar para aumentar a segurança jurídica na aplicação das normas, inclusive por meio de regulamentos, súmulas administrativas e respostas a consultas”, tendo como objetivo realizar o trespasse da stare decisis às decisões administrativas.

A atual composição do Tribunal Administrativo do Cade parece estar atenta a esse debate e à necessidade de gerar previsibilidade e segurança jurídica, bem como de preservar a isonomia no tratamento dos administrados (treat like cases alike), conferindo observância às decisões proferidas (backward-looking) e constituindo os futuros precedentes (fooward-looking), principalmente no que se refere ao padrão probatório de condenações de cartéis.

Na sessão ordinária de julgamento (“SOJ”) do Cade realizada no dia 08.03.2023, ocorreu um extenso debate acerca da valoração das provas indiretas e unilaterais, bem como da importância de o Conselho reafirmar e unificar sua jurisprudência sobre o standard probatório necessário para condenação por prática de cartel durante o julgamento do Processo Administrativo nº 08700.010323/2012-78, instaurado para apurar suposta prática de cartel no mercado nacional de sistemas térmicos automotivos (módulos de arrefecimento do motor – Engine Cooling Modules – “ECM”, radiadores, condensadores; sistemas de aquecimento, ventilação e ar-condicionado – Heating, Ventilation and Air conditioning – “HVAC”).

No caso do cartel de sistemas térmicos automotivos em comento, a constatação da ocorrência do ilícito derivou da assunção de culpa e das informações e dos documentos extraídos de acordos administrativos (Acordos de Leniência – “ALs” – e Termos de Compromisso de Cessação de Conduta – “TCCs”) celebrados entre o Cade e parte das empresas e pessoas físicas representadas, contra as quais a investigação foi suspensa. O julgamento prosseguiu em face de duas empresas e pessoas físicas não administradoras ligadas a tais empresas.

Em sua Nota Técnica[6], a Superintendência Geral do Cade (“SG/Cade”) recomendou que as empresas representadas fossem condenadas tendo em vista que constariam “nos autos 22 evidências de sua participação na conduta”, que constituiriam provas diretas do conluio. O Parecer[7] do Ministério Público Federal junto ao Cade (“MPF/Cade”) também defendeu a condenação por entender que o conjunto probatório seria suficiente à demonstração da adesão das empresas ao acordo anticompetitivo. Já a Procuradoria Federal Especializada junto ao Cade (“PFE/Cade”) apresentou divergência em relação à sugestão de condenação pela SG/Cade e pelo MPF/Cade, recomendando o arquivamento em relação às representadas por entender que o conjunto probatório reunido nos autos seria insuficiente para demonstrar a participação das empresas no conluio.

Diante das divergências apresentadas, o Presidente Alexandre Cordeiro suscitou a necessidade de aprofundamento da análise do conjunto probatório sob a ótica de uma revisão comparativa da jurisprudência do Tribunal do Cade acerca do padrão probatório para condenação de cartéis.

Durante seu voto em sessão, o Presidente ponderou que “é imperativa a observância dos limites à utilização de tais provas (indiretas), uma vez que podem ser ambíguas e, portanto, não levar à inequívoca certeza da participação do representado no ilícito”. Complementou, ainda, que “é imprescindível que sejam apresentadas provas suficientemente fortes e robustas e isso consta, inclusive, no nosso Guia de Recomendações Probatórias para propostas de Acordo de Leniência. Justamente, provas robustas da existência do cartel e, não menos importante, que tais provas impliquem, para além da dúvida razoável, o envolvimento individualizado dos investigados[8]”.

Além disso, fez considerações sobre a importância do respeito ao princípio do in dubio pro reo e sustentou que os “Acordos de Leniência e Compromissos de Cessação firmados por participantes das infrações investigadas constituem importante fonte de informação sobre a existência, participação e duração de cartéis. Ocorre que os relatos de tais acordos necessitam de documentos que os amparem, não sendo, por si só, uma sentença condenatória, sob pena de ensejar condenações sem lastro e um suporte condenatório adequado[9]”.

Por fim, após análise detalhada de precedentes das cortes superiores, do Tribunal do Cade e dos guias produzidos pela autarquia, bem como dos autos, o Presidente conclui pelo arquivamento devido à ausência de suporte probatório suficiente para condenação por qualquer tipo de prática anticoncorrencial.

É válido destacar, também, o posicionamento do Conselheiro Luiz Hoffmann, que asseverou em seu voto que “é indispensável que as provas indiretas sejam analisadas de forma sistemática, considerando o conjunto probatório como um todo, assim como sustenta o Guia de Combate à Cartéis já mencionado e também as publicações que a própria OCDE tem nesse sentido”. O Conselheiro acompanhou o voto-vista do Presidente ao concluir que “além de as provas indiretas derivarem de apenas uma única fonte, elas não possuem conteúdo anticompetitivo visível para todos[10]”.

Já o Conselheiro Gustavo Lima teceu breves comentários acerca da necessidade de existência de um padrão de qualidade na análise de provas para condenação de um cartel. Além disso, destacou que, a partir do longo aprendizado adquirido a partir da experiência do Poder Judiciário com relação ao instituto da colaboração premiada, faz-se imprescindível a existência de corroboração dos relatos dos Lenientes, independentemente de se tratar de provas indiretas ou diretas.

Do seu voto em sessão, extrai-se importante declaração sobre a importância da segurança jurídica e da previsibilidade dos julgamentos do Cade. Vejamos:

“Onde o Cade deve colocar o seu ‘sarrafo’ em termos de standard probatório? Porque nós somos única e última instância de todo o Poder Executivo e as nossas decisões somente podem ser reformadas pelo Poder Judiciário e ainda assim o Judiciário o faz com muito comedimento. Mas somos a única instância do Poder Executivo que declara se houve ou não um cartel em determinado caso. Por isso, temos que ter a máxima responsabilidade em fazer tal afirmação. Nós temos que ter um padrão de qualidade de prova que quando o Cade afirma que houve um cartel se saiba que um determinado padrão de qualidade foi atingido (…) Então, ao afirmarmos que uma empresa participou ou não de um cartel, tem que haver uma segurança para o mercado, para o Poder Judiciário e para a sociedade, de que determinados requisitos mínimos geraram o convencimento[11].”

Sob outra perspectiva, o Conselheiro Victor Fernandes mencionou o importante debate acerca da força probatória de provas indiretas de comunicação, consoante entendimento da OCDE[12], a fim de explicar que a natureza direta ou indireta da prova possui repercussões para a oponibilidade da defesa das empresas investigadas, visto que, de um lado, a prova direta geraria o ônus de comprovação de inocorrência do fato, e, de outro, a prova indireta geraria o ônus de explicação alternativa dotada de racionalidade e plausibilidade para o fato.

No que tange ao caso em comento, o Conselheiro defendeu que a defesa das empresas representadas trouxe explicação alternativa dotada de racionalidade e plausibilidade para os fatos relatados nas provas indiretas (i. e. a relação comercial com a empresa concorrente e a ausência de comercialização do produto à época do cartel), que, por sua vez, não teriam o condão de comprovar a participação da empresa no conluio.

Dessa forma, o Plenário do Cade, por maioria, determinou o arquivamento do processo administrativo em face das empresas representadas, nos termos do voto do Presidente do Cade, ficando vencidos o Conselheiro Relator Sérgio Ravagnani e o Conselheiro Luis Braido.

Muito embora o caso do cartel de sistemas térmicos automotivos tenha sido, ao que nos parece, o julgamento mais emblemático do ano de 2023 em relação à temática do padrão de prova necessário para condenações de cartéis e à garantia de previsibilidade e segurança jurídica ao administrado, outro caso interessante também pode ser destacado.

No caso do cartel internacional de cabos subterrâneos e submarinos[13], o Tribunal do Cade reconheceu a necessidade de adotar o mesmo padrão probatório no processo administrativo originário e no processo “filhote”, de forma a garantir a isonomia entre todos os representados relacionados ao cartel. Dessa forma, determinou o arquivamento do processo filhote em relação a algumas pessoas físicas, visto que, no processo originário, considerou-se que evidências análogas, isto é, simples menções das iniciais do investigado em atas de reuniões, não seriam suficientes para indicar a participação das pessoas jurídicas que eles representavam em um cartel, esses indícios poderiam sugerir, no máximo, a ocorrência de condutas menos gravosas, como troca de informações sensíveis, que já estariam prescritas.

Nesse sentido, a partir dos posicionamentos dos Conselheiros da atual formação do Tribunal e dos precedentes firmados pelo colegiado em 2023, observa-se uma verdadeira preocupação com a uniformização da jurisprudência do Cade acerca do standard probatório para condenação de cartéis, principalmente na análise de conjuntos probatórios formados por provas indiretas, a fim de garantir segurança jurídica e previsibilidade às decisões da autarquia antitruste.

Por outro lado, com o término do mandato de 4 dos 6 Conselheiros do Cade ainda no ano de 2023, a comunidade antitruste fica na expectativa se a futura formação estará atenta à discussão e aplicará “valorações semelhantes a provas parecidas em diferentes casos” futuros de acordo com a jurisprudência do Conselho, bem como se os elementos classificados no “Guia de Recomendações Probatórias para Propostas de Acordo de Leniência com o Cade” para suficiência do conjunto probatório serão respeitados, o que representaria um importante passo para a solidificação do stare decisis nas decisões administrativas da autarquia antitruste brasileira.


[1] DA SILVEIRA, Paulo Burnier; LACERDA, João Felipe Aranha. Valoração e padrão de prova em processos administrativos de cartel. Revista do Ibrac: São Paulo, 2018, vol. 24, n. 1- 2018, p. 70.

[2] Op. cit., p. 74.

[3] Cf. art. 79, inciso I, da Lei de Defesa da Concorrência e dos incisos I e II c/c § 1º, do art. 50, da Lei nº 9.784/99 (“Lei do Processo Administrativo Federal”).

[4] CADE. Guia de recomendações probatórias para propostas de acordos de leniência com o Cade. 2021. Disponível em:  https://cdn.cade.gov.br/Portal/centrais-de-conteudo/publicacoes/guias-do-cade/Guia-recomendacoes-probatorias-para-proposta-de-acordo-de-leniencia-com-o-Cade.pdf.

[5] Vide Processo Administrativo nº 08012.004039/2001-68 (cartel do pão), julgado em 22.05.2013.

[6] Nota Técnica SG/Cade nº 114/2021 (SEI 0989284).

[7] Parecer MPF/Cade nº 3/2022 (SEI 1071736).

[8] Vide 1h06min do Vídeo da 209ª Sessão Ordinária de Julgamento.  Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=QfNEoL4Y4AM . Acesso em 1 ago. 2023.

[9] Vide 1h09min do Vídeo da 209ª Sessão Ordinária de Julgamento.

[10] Vide 1h38min do Vídeo da 209ª Sessão Ordinária de Julgamento. 

[11] Vide 1h45min do Vídeo da 209ª Sessão Ordinária de Julgamento.

[12] ORGANIZAÇÃO PARA A COOPERAÇÃO E DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO (OCDE). Prosecuting Cartels without Direct Evidence, 2006, p. 10 (“communication evidence is evidence that cartel operators met or otherwise communicated, but does not describe the substance of their communications”).

[13] Processo Administrativo nº 08700.008576/2012-81. Julgado em 08.02.2023.


Polyanna Vilanova é ex-conselheira do Cade e sócia no Vilanova Advocacia.

Henrique Muniz é advogado no escritório Vilanova Advocacia.

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