Cristina Ribas Vargas
Estudar a economia chinesa é sempre um desafio gigantesco, não só pela dimensão geográfica e populacional do país, como pelas peculiaridades de sua cultura de mais de quatro mil anos, distribuídas por vinte e duas províncias, cinco regiões autônomas (Guanexi, Mongólia interior, Ningxia, Xinjiang e Tibete), quatro municípios e duas regiões administrativas. Sobretudo as peculiaridades históricas atinentes à sua prática comercial internacional nos leva a refletir sobre como esse país encara a política antitruste e o próprio sentido da concorrência.
Breve histórico das origens do Comércio e Concorrência na China
A estratégia dos Chineses durante a conformação geográfica do país, por volta de 119 a.C., objetivava evitar as invasões de suas fronteiras, ao mesmo tempo em que buscava garantir a continuidade de suas transações comerciais. Antes de expulsarem os povos nômades (particularmente os Xiongnú) das aéreas de fronteira por via militar, curiosamente os chineses procuraram transformar os seus costumes. Durante muitos anos, a fim de conter as invasões, os chineses presenteavam os nômades com os produtos disponibilizados na rota da seda, produtos diferenciados, considerados artigos de luxo no comércio internacional. Os tecidos de seda de alta qualidade eram os principais artigos, além da porcelana, especiarias e até mesmo produtos com algum grau de inovação, como as lanternas de azeite de peixe para iluminação. O comércio era regulamentado por uma estrutura formal, e toda transação ocorrida no corredor de Ganzu era registrada. Todos os comerciantes estrangeiros que ingressavam no país eram registrados, assim como, todos os valores de sua movimentação comercial. Para o controle efetivo das contas os comerciantes estrangeiros deveriam seguir uma rota estabelecida e fiscalizada pelo governo. Há mais de dois mil anos esse intenso comércio já era um fato, gerando oportunidades, conflitos e incentivando avanços técnicos. Por volta do século I a.C. a expansão do Império Romano rumo ao oriente resultava na dominação do Egito e alcançava a Índia, onde ocorria intenso intercambio comercial. O acirramento do conflito religioso na região do oriente médio intensificou-se até meados do século VIII, quando os mulçumanos tentavam avançar até fronteira ocidental da China, tomando os corredores comerciais da região, e até o século XIV, a China continuaria sofrendo com as invasões dos Mongóis pelo norte, e pela disseminação da Peste Negra. Mesmo durante esse período intenso de invasões bárbaras a China ainda era considerada como um país seguro para o trânsito comercial, oferecendo o controle e a segurança para os comerciantes estrangeiros que lá ingressavam. Após a peste Negra e o renascimento da Europa, o fluxo comercial marítimo conduz a relações comerciais mais intensas entre Europa, Índia e China. Contudo é somente no século XVIII que a Inglaterra supera técnica e cientificamente a China, passando a impor, nos países onde possui influência colonial, restrições comerciais `a China. No Brasil, com a chegada da família imperial em 1808, a Inglaterra exigia a substituição dos produtos chineses pelos ingleses por meio de decretos imperiais impresvistos, a serem executados em curtíssimo prazo. Esse foi o caso da substituição dos telhados em formato de pagoda na cidade do Rio de Janeiro, que deveriam ser substituídos por seus proprietários no prazo máximo de uma semana. Produtos antes apreciados pelos brasileiros tornaram-se objeto de uma política de “desassombramento”, que visava extirpar da cultura brasileira os “costumes bisonhos” de consumir produtos chineses. Em 1839 a Guerra do Ópio marcaria de forma militar invasiva a tentativa de colonização britânica da China. E posteriormente, a invasão japonesa durante a II Guerra Mundial seria a última grande tentativa de dominação do território Chinês. A partir daí a China enfrenta o dualismo interno entre uma proposta econômica do partido nacionalista Kuomitang e do Partido Comunista Chinês, que assume o poder em 1949. Após tantas tentativas de invasões territoriais, enfrentamento de políticas restricionistas e dificuldades de unificação de diversas culturas em diferentes províncias, em meio a um ambiente conflituoso da Guerra Fria, e sob o jugo da União Soviética, o que se percebe é uma China lutando para manter seu processo de consolidação nacional. Após o fracasso resultante do plano de Mao Tse Tung “Grande Salto à Frente” a China decide retomar em 1978 o caminho que desde suas origens lhe parecia natural, qual seja, a retomada de suas relações comerciais com o mundo. Dessa vez surge um processo inovador, de estímulo de parcerias entre as grandes empresas estatais e empreendimentos individuais, conformando o que se convencionou chamar de uma economia socialista de mercado, orquestrada por Deng Xiaoping. Essa dinâmica promovida por um sistema intenso de exportações inicialmente de produtos de menor valor agregado e posteriormente de produtos intensivos em tecnologia, resultou na economia com as maiores taxas de crescimento do inicio do século XXI. Não obstante, o mundo questionava-se sobre como o país, comandado pelo partido comunista, lidaria com a crescente concentração de riqueza nas mãos de alguns poucos capitalistas chineses, e sobre como atuaria para fiscalizar possíveis abusos do poder econômico advindo desse novo cenário.
O Caso das Empresas Intensivas em Tecnologia
Em 2021 o governo Chinês estabeleceu como uma das prioridades para o país a implementação de políticas regulatórias antitruste. Ainda em 2021 impôs uma multa de 2,8 bilhões de dólares à empresa Alibaba, o que corresponderia a 4% do total do faturamento da empresa em 2019. Após a investigação a conclusão foi de que acordos de negociação exclusiva impediam os comerciantes de venderem seus produtos em outras plataformas além da Alibaba. Além disso, ainda em 2020 o governo já havia imposto restrições sobre o funcionamento da Fintech Ant Group, da empresa de tecnologia Didi Global e da gigante de entregas Meituam sobre a constituição de uma cadeia monopolista. Quanto ao segmento de educação on-line o governo Chinês chegou a alegar que o projeto de educação fora seqüestrado pelo capital, e tem tratado de implementar uma nova estrutura regulatória para o segmento.
Enquanto nos EUA há um predomínio das empresas de inovação em tecnologia, as Bigtechs, na China a liderança é das empresas de transmissão de dados. Enquanto o governo Chinês acreditava que era benéfica a competição dessas empresas com gigantes americanas, permitiu sua instalação na região do Caribe, e a parceria entre empresas de inovação dos EUA e de transmissão da China. Não obstante, cada vez mais, ambos os países demonstram preocupações com as informações de posse dessas empresas. Sob esse argumento a China reviu a estratégia para instalação e cooperação com empresas dos EUA via região do Caribe.
Essa postura da China, de impor limites à atuação das bigtechs chinesas, bem como, às parcerias com empresas de tecnologia estrangeiras, tem sido apontada pelos críticos à política chinesa como excesso de intervenção do Estado. Por outro lado, pode significar importante estratégia, para ganhar vantagem contra seu principal rival, na liderança em inovações em produtos de valor agregado elevado. Neste caso, a política de incentivo às pequenas empresas do segmento de inovação na China pode ter importante papel, ao evitar-se que sejam restringidas pelas gigantes. Já foi anunciado pelo governo o desejo de incentivar parcerias entre governo e empresas nos segmentos de inteligência artificial e semicondutores. Conforme Angela Zhang o caso do Alibaba levou apenas quatro meses para a aplicação da decisão da autoridade antitruste, conferindo maior segurança e confiança ao ambiente institucional. Em comparação acredita que as autoridades antitruste de EUA e União Européia devem demorar anos para impor limites a casos que envolvem grandes empresas.
Aplicação da Lei Antimonopólio na China em 2023.
O governo Chinês deixou claro que a regulação dos mercados e a aplicação da legislação antitruste está fortemente vinculada à política de desenvolvimento definida pelo governo. Enquanto nos EUA a ação antitruste tem como objetivo precípuo a proteção ao consumidor, na China ela segue pari passu os objetivos da política governamental. Além disso, o governo chinês compreendeu a necessidade de sinalizar ao mercado que sua intervenção visa uma coordenação que busca equalizar as já conhecidas falhas de mercado.
Nesse sentido, em junho de 2023, a Administração Estatal de Regulamentação de Mercado da China (SAMR) divulgou o Relatório Anual sobre a Aplicação da Lei Antimonopólio na China (2022). Neste Relatório destacam-se alguns dispositivos que visam conferir limites à atuação do agente estatal, na prevenção do abuso de poder administrativo:
Conforme o artigo 13.º da Lei Antimonopólio, a Administração Estatal de Regulação dos Mercados autoriza todas as províncias, regiões autônomas, departamentos de supervisão e administração do mercado dos governos dos distritos e municípios diretamente subordinados ao Governo Central a aplicação da Lei Antimonopólio, incluindo seus dispositivos que tratam do abuso do poder administrativo.
As organizações não devem abusar do poder administrativo ao restringir ou operações comerciais de unidades ou indivíduos nas seguintes situações: ao tratar as bases de dados, ao disfarçar restrições a unidades ou indivíduos que realizam operações comerciais, prejudicar outras partes ao assinar acordos de cooperação, memorandos, etc. com outros agentes econômicos, impedir ou restringir a livre circulação de mercadorias entre regiões. Ainda, não poderá ser praticado abuso do poder administrativo para coagir operadores estrangeiros a realizar determinados investimentos em escala e local definido pelo poder administrativo.
Ainda, as organizações não devem abusar do poder administrativo para forçar pública ou secretamente os operadores a se envolverem em atividades de monopólio estipuladas na Lei Antimonopólio.
Ademais, as agências de aplicação da lei antimonopólio deverão, de acordo com os seus poderes, encaminhar relatórios às autoridades superiores se for encontrada qualquer suspeita de abuso do poder administrativo.
Assim, em que pese o caráter extremamente peculiar da sociedade chinesa, em que a simbiose entre Estado e mercado ainda está em plena ebulição, influenciando diretamente sua relação com o resto do mundo, podemos identificar no Relatório Antimonopólio um esforço em garantir integridade aos processos de defesa da concorrência. Acompanhar os avanços na legislação e as práticas da China em matéria de antitruste sem dúvida parece ser indispensável na atualidade.
FRANKOPAN, Peter. O coração do mundo: Uma nova história universal a partir da rota da seda: o encontro do oriente com o ocidente.São Paulo: Planeta, 2019.
VARGAS, Cristina. O Crescimento Econômico da China entre 1952 E 2015: uma aplicação econométrica da Lei de Thirlwall.
Disponível em https://www.lume.ufrgs.br/handle/10183/168625
Relatório Anual sobre a Aplicação da Lei Antimonopólio na China (2022).
Disponível em https://drive.google.com/file/d/14M4E9wdJeMeYCd7HbneDZrF5EuiZlz8w/view
WebAdvocacy. A Geopolítica na economia digital. EUA e China posicionados. Por anda a Europa? Editorial, 29 jan de 2023.
Disponível em https://webadvocacy.com.br/2023/01/29/a-geopolitica-na-economia-digital-eua-e-china-posicionados-por-onde-anda-a-europa/
CNN Brasil: China multa gigantes de tecnologia por violação de leis antitruste.
Disponível em https://www.cnnbrasil.com.br/economia/china-multa-gigantes-de-tecnologia-por-violacao-de-leis-antitruste/
Cristina Ribas Vargas. Doutora em economia do desenvolvimento pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, mestre em Economia do Desenvolvimento pela PUC/RS e Bacharel em Ciências Econômicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Atuou como professora substituta na UFRGS e professora adjunta em instituições de ensino privado. É economista da Administração Pública Federal desde 2005, e atualmente está atuando na CGAA2 do Cade.