Maria Augusta Sampaio Ferraz
O problema da massificação de demandas judiciais não é novidade no Brasil. Desde a promulgação da Constituição de 1988 e da garantia do livre acesso à justiça, o número de demandas judiciais no país aumentou de forma exponencial.
Segundo dados do CNJ[1], havia 81 milhões de processos em tramitação no Brasil até dezembro de 2022. Nesse mesmo ano, foram distribuídas 31 milhões de novas ações.
Tais números, que representam o volume de demandas nos tribunais, tornou o sistema processual brasileiro desafiador para o alcance de garantias constitucionais, dentre elas, a segurança jurídica, celeridade e eficiência da prestação jurisdicional.
Nesse contexto, a efetivação das funções das Cortes Superiores, quais sejam, Supremo Tribunal Federal e do Superior Tribunal de Justiça, se mostram urgentes e necessárias.
A extrema judicialização no Brasil, em conjunto com a facilidade de recorrer da parte litigante que perde a demanda, tornou-se cenário perfeito para que as Cortes Superiores se transformassem em meros tribunais recursais, onde, em grande parte, os litigantes recorrem apenas para ganhar tempo e protelar uma decisão final.
Em 2022, o STJ recebeu 399.455 processos, o equivalente a três processos a cada quatro minutos durante todos os dias do ano. No mesmo período, o mesmo tribunal atingiu a marca de 577.707 julgamentos. É como se cada ministro tivesse julgado 17.506 processos no ano, ou 48 processos por dia, caso trabalhasse todos os dias do ano.
Tais dados refletem um sistema ineficiente, no qual o cidadão que aguarda uma análise minimamente cautelosa do seu caso, não recebe a devida prestação jurisdicional.
O papel das Cortes Superiores
Diante do cenário apresentado, faz-se necessária uma reflexão do real papel das Cortes Superiores. E nesse contexto surge a figura dos precedentes, cada vez mais presente no cenário jurídico brasileiro.
As Cortes de Precedentes, como deveríamos chamar o STF e o STJ, são cortes cuja função é de interpretação do direito constitucional e direito federal, a partir do julgamento de um caso concreto, para que aquela decisão proferida sirva de modelo para aplicação do direito pelas instâncias inferiores.
Nesse sentido, com o volume processual já citado e um sistema jurídico processual onde existem decisões distintas sobre o mesmo fato, os precedentes tem extrema importância para a uniformização da intepretação legal e logo, para segurança jurídica.
O STF, com a criação da Repercussão Geral, em 2004, através da Emenda Constitucional 45, conseguiu, ao longo dos anos, diminuir consideravelmente o número de processos que chegassem a Corte, uma vez que a parte que deseje ter o seu recurso apreciado pelo referido tribunal, deve demonstrar que o seu caso possui relevância jurídica, política, social ou econômica. Ou seja, o STF forma Teses de Repercussão Geral sobre matéria constitucional que devem ser observados por todos os juízes e tribunais.
E o STJ, estando em situação crítica em volume processual, também precisou de um instrumento que concretize o seu papel como Corte de formação de teses sobre matéria federal.
O Superior Tribunal de Justiça e o Filtro da Relevância
Na tentativa de efetivação do STJ como uma Corte de Precedentes para consequente diminuição no número de demandas e melhora na prestação jurisdicional, a Câmara dos Deputados aprovou em julho de 2022 a Proposta de Emenda à Constituição 39/2021, denominada “PEC da Relevância”, a qual altera a redação do artigo 105 da Constituição, para inserir um novo requisito intrínseco de admissibilidade do recurso especial, tanto na esfera civil quanto na criminal.
A partir da promulgação da referida emenda, a nova regra impõe ao recorrente o ônus de demonstrar a relevância da questão ou questões federais deduzidas como fundamento do recurso especial, ou seja, o litigante tem o ônus de evidenciar que a questão jurídica a ser decidida pelo Superior Tribunal de Justiça ostenta uma relevância que ultrapassa o interesse subjetivo das partes. Essa relevância deve ser comprovada pelas perspectivas jurídica, econômica e social.
Além disso, o STJ julgará temas relevantes para formação de teses sobre lei federal, as quais deverão ser aplicadas pelos juízes e tribunais, como ocorre com a Repercussão Geral, no âmbito do STF.
Em recente entrevista, o ministro Gurgel de Faria, do STJ, faz a comparação entre os institutos e ressalta a necessidade do filtro para a formação de precedentes pelo STJ. Para o ministro, no STF, foi possível perceber a importância da fixação de precedentes para reduzir o número de processos e dar uma maior atenção a eles.
“Quanto mais processos, por óbvio você vai ter que julgar mais rápido e ali muitas vezes a rapidez faz com que você não dê atenção a temas que são importantes.”
A inclusão dos incisos 2º e 3º ao artigo 105 da Constituição Federal tem como principal objetivo a concretização do papel do Superior Tribunal de Justiça não como uma mera corte de cassação ou de controle, mas sim como uma corte de precedentes no que se refere à matéria de legislação federal.
Para a aplicação do “filtro da relevância”, é necessária uma lei que o regulamente. Nesse sentido, o STJ entregou, no dia 05 de dezembro de 2022, ao presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, uma sugestão de anteprojeto para a regulamentação do filtro de relevância do recurso especial. Contudo, até o momento não houve movimentação do órgão para prosseguimento do feito.
Diante do cenário exposto, em que o volume processual se torna cada ano maior e a insegurança jurídica se encontra presente em razão de decisões distintas acerca do mesmo fato, a regulamentação do Filtro de Relevância se mostra urgente.
As Cortes Superiores precisam exercer suas funções de forma plena para que possamos caminhar no sentido de prover a devida prestação jurisdicional, com segurança jurídica e razoável duração do processo, conforme determina a Constituição Federal.
[1] Disponível em: justica-em-numeros-2023-010923.pdf (cnj.jus.br)
Maria Augusta Sampaio Ferraz. Advogada especialista em processo civil e em processos nas Cortes Superiores. Mestranda em processo civil pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Atua há 15 anos perante as Cortes Superiores (STF e STJ), com larga experiência e expertise na área.