A Experiência do Leilão H2Global

Katia Rocha & Nelson Siffert

O desenvolvimento do mercado de hidrogênio de baixo carbono tornou-se um objetivo estratégico de governos e empresas em todo o mundo. Essa agenda ganhou momento a partir de políticas para a retomada econômica no pós-pandemia, visando acelerar a Transição Energética, buscando alcançar as metas estabelecidas no Acordo de Paris, ou, no Green Deal Europeu, com a respectiva neutralidade climática em 2050.

No contexto de Transição Energética e descarbonização da economia, o hidrogênio de baixo carbono posiciona-se como um dos protagonistas em termos de vetor energético. Possui vantagens devido à alta densidade energética, versatilidade de uso, ser um combustível carbon-free e a possibilidade de atuar no de armazenamento de energia renovável.

Diversos países estão estimulando o desenvolvimento da economia de hidrogênio conforme o crescente anúncio de políticas públicas, roadmaps, e projetos demonstrativos em toda cadeia de valor do hidrogênio, com número de projetos escalando com velocidade[1].

No Brasil, o Conselho Nacional de Política Energética – CNPE instituiu em 2022 o Programa Nacional de Hidrogênio – PNH2 com finalidade de desenvolver e consolidar o mercado de hidrogênio no Brasil através dos pilares de políticas públicas, tecnologia e mercado. Apresentou no mesmo ano o Programa Trienal (2023-2035) do PNH2, que estabelece atividades e metas para fortalecimento e desenvolvimento da cadeia de valor de hidrogênio de baixo carbono, sendo objeto de consulta pública em 2023.

As iniciativas trazem como princípios a valorização do potencial nacional de recursos energéticos, o reconhecimento da diversidade de fontes energéticas e rotas tecnológicas, a descarbonização da economia, a valorização e incentivo ao desenvolvimento tecnológico nacional; a cooperação internacional, e o interesse em desenvolver e consolidar o mercado de hidrogênio no Brasil e a inserção internacional do País em bases economicamente competitivas.

Nesse artigo, destacamos o eixo relativo aos mecanismos de políticas públicas voltadas para o desenvolvimento do mercado do hidrogênio verde com base na promoção de processos competitivos. Para tal, apresentamos a experiência do Leilão H2Global, enquanto política pública que faz uso de leilões de compra e venda de derivados do hidrogênio verde, para sugerir estratégias voltadas para o desenvolvimento do mercado de hidrogênio verde no Brasil.

Certamente, a construção de paralelos desta ordem, entre a experiência internacional e o contexto local, implica em reconhecer que são distintos tanto os arranjos institucionais como os atores envolvidos. Todavia, entende-se que é possível indicar possíveis desenhos de políticas públicas que fazem uso de mecanismos competitivos para promoção da equalização de preços visando o desenvolvimento do mercado de hidrogênio.

O leilão H2Global de compra de derivados de hidrogênio verde (H2V), é uma iniciativa do governo Alemão, que estabelece contratos de longo prazo de fornecimento de derivados de H2V – amônia verde, metanol verde e combustível de aviação sustentável (SAF), com data prevista do certame para meados 2023, e entregas iniciais entre 2024 e 2026, mantendo regularidade até o final do contrato em 2033.

O Leilão apresenta um conjunto de critérios que, muito provavelmente, irão balizar a nascente indústria do hidrogênio verde, com possibilidades de sinalizar para todos os players, de diferentes geografias, com interesse na indústria do hidrogênio verde, os preços de mercado, obtidos por meio de processos competitivos com critérios transparentes disponíveis para todos agentes que atuam ou pretendem atuar neste mercado. Espera-se, assim, que sejam revelados os preços dos derivados de hidrogênio verde, estabelecendo indicadores de preços de mercado, possibilitando os primeiros passos para estabelecer uma curva de preços, a semelhança do que já ocorre nos mercados futuros de commodities.

Podem participar como ofertantes somente países fora da União Europeia, buscando-se dar suporte ao nascente mercado internacional de energias renováveis. Dispõe de volume financeiro de € 900 milhões, podendo alcançar cifras ao redor de € 4 bilhões. Iniciativas recentes, como a do Governo Holandês, vão na mesma direção.

Representa um significativo passo inicial para o setor de hidrogênio verde em todo mundo. Em especial, para países competitivos em energias renováveis, como o Brasil, onde 83% da matriz de energia elétrica é proveniente de fontes renováveis[2]. É uma oportunidade para empreendedores inserirem-se na cadeia global de fornecimento do hidrogênio verde. Viabiliza novas e amplas possibilidades de investimentos e geração de empregos a partir do adensamento da indústria de energias renováveis.

No desenho do leilão proposto, a subsidiária HintCo – Hydrogen Intermediary Network Company (trader/facility) atua como um offtaker, se dispondo a estabelecer contratos de longo prazo (10 anos) de compra de derivados verdes (Hydrogen Power Agreement – HPA) e contratos de venda no curto prazo (Hydrogen Supply Agreement – HSA), equalizando a eventual diferença de preços entre ambos, via mecanismo de leilão duplo.

O mecanismo do leilão duplo, peça central da modelagem desenvolvida, sugere a adoção de processos competitivos para equalização de preços, tanto nos contratos de compra de longo prazo de derivados do H2V, como nos contratos de venda no mercado de curto prazo. O orçamento total para equalização disponibiliza EUR 300 milhões para cada lote de derivado (amônia, metanol e querosene SAF, verdes), disponibilizados em tranches anuais, à medida que o contrato de compra e venda realiza as entregas dos produtos em portos da Alemanha, Bélgica ou Holanda.

As regras colocadas no leilão, referentes ao suprimento de energia consumida no processo de produção de hidrogênio e respectivos derivados colocam os empreendedores do mercado brasileiro de energia renováveis com vantagens competitivas[3]. As três possibilidades de suprimento apresentadas – grid, contrato bilateral do tipo Power Purchase Agreement – PPA no mercado livre, e conexão própria do eletrolisador com o parque gerador – são passíveis de certificação pela Câmara de Comercialização de Energia Elétrica – CCEE.  

A CCEE desenvolveu, recentemente, procedimentos de Certificação de Hidrogênio com objetivo de comprovar a origem e rastreabilidade dos atributos ambientais da energia consumida. Apresenta-se apta para certificar que a energia consumida na produção dos derivados verdes, atendendo a critérios quanto: i) a origem da sua geração; ii) princípio da adicionalidade; iii) correlação temporal; e iv) correlação geográfica.

O consórcio vencedor, com base no recebível gerado pelo contrato de longo prazo (HPA de 10 anos), tem condições de viabilizar a estruturação do funding necessário à implantação do projeto por meio de Sociedades de Propósito Específico[4].

A eventual diferença de preços entre os HPA´s e os HSA´s representa o subsídio (equalização) destinado a tornar os produtos que fazem uso do hidrogênio verde mais competitivos, face aqueles que fazem uso de combustíveis fósseis.

É reconhecido que a indústria nascente do hidrogênio verde apresenta um custo nivelado de produção (LCOH) maior que os da molécula cinza (gás natural). No entanto, é esperado o aumento da sua competitividade nos próximos anos em função de diversos fatores como eficiência tecnológica, escala de produção, redução do preço da energia renovável, menores custos de equipamentos de eletrólise e do efeito da taxação do carbono[5]. Quanto maior o valor dos créditos de carbono ou mesmo a taxação sobre emissões, menor tende a ser o diferencial de preços entre os derivados verde e cinza[6].

Dessa forma, a equalização de preços proposta deve ser entendida como um apoio temporário de política pública, visando promover o desenvolvimento da indústria de hidrogênio verde favorecendo a transição energética.

Recomendações das políticas públicas apontam para a necessidade de se garantir a demanda através de contratos de longo prazo, estabelecidos via uma facility, que no caso do Leilão H2Global é representado pela HintCo, cuja função é atuar como trader, administrando contratos de compra e venda, sem dispor da operação ou propriedade de ativos operacionais.

Os contratos de longo prazo estabelecidos pela HintCo possibilitam a estruturação do funding necessário à implantação dos projetos, em especial, na modalidade project finance, aumentando a atratividade dos investimentos privados na cadeia produtiva do hidrogênio verde. Novos modelos de negócios passam a ser viabilizados.

Igualmente importante é o mecanismo de Leilão Duplo para equalização de preços (subsídio), entre a molécula verde e cinza, construído em bases competitivas (leilão), buscando-se a eficiência no uso dos recursos públicos. Tal estratégia é entendida como um apoio temporário de política pública, dado a expectativa de aumento de competitividade da molécula verde nos próximos anos em comparação à cinza. Política semelhante já foi adotada para incentivos em geração solar PV e eólica[7]. Desta forma, o sistema de leilões teria potencial de alavancar toda a cadeia de valor da indústria de hidrogênio verde. Atingir a paridade de custos com formas intensivas de carbono é fundamental para as perspectivas futuras dessa indústria.

Finalmente, a coordenação institucional, demostrada pela célere manifestação da CCEE no quesito certificação, ilustra que, não basta, apenas, possuir vantagens competitivas e comparativas em geração renovável. Faz-se igualmente necessário o desenvolvimento de arranjos institucionais específicos, setoriais, de natureza pública e privada, de modo a mostrar-se competitivo, visando o desenvolvimento potencial de toda indústria de hidrogênio verde no Brasil.

Referências

  1. Gesel (2022). Observatório de Hidrogênio. 4O Trimestre de 2022. UFRJ.
  2. Global Hydrogen Review (2021). International Renewable Energy Agency.
  3. Global Hydrogen Review (2022). International Renewable Energy Agency.
  4. IRENA (2019). Renewable energy auctions: Status and trends beyond price, International Renewable Energy Agency, Abu Dhabi.
  5. MME (2021). Programa Nacional de Hidrogênio. Propostas de Diretrizes.
  6. MME (2022). Programa Nacional de Hidrogênio. Plano de Trabalho Trienal. 2023-2025.
  7. Tender procedure for the purchase of green hydrogen – Lot 1 (ammonia) Los1_16_ENG Terms and Conditions for the Bidding Phase 28 Nov. 2022. https://exficon.de/tad/current-tenders/

[1] No Brasil os principais projetos em plantas de hidrogênio verde concentram-se no Ceará – Porto de Pecém (Energix Energy, Fortescue Future Industries, Qair Brasil, EDP Brasil), Bahia (Unigel), Pernambuco (White Martins, Qair Brasil), Rio Grande do Sul (Neoenergia), Rio de Janeiro – Porto do Açu (Shell Brasil). Ver Gesel (2022).

[2] O potencial Brasileiro para desenvolver uma economia de hidrogênio pode ser analisado pelo “Painel de Dados de Potencial Técnico de Produção de Hidrogênio” desenvolvido pela EPE, com visualização geográfica de diversas rotas tecnológicas e empresas envolvidas.

[3] Tender procedure for the purchase of green hydrogen – Lot 1 (ammonia).

[4] Na hipótese, exemplificadora, de quatro vencedores para o lote de amônia verde, simulações preliminares apontam cada consórcio com USD 130 Milhões de Equity (alavancagem 40/60), USD 330 Milhões de Capex (geração própria integrada), produção de 35 mil.t/ano de amônia verde (95 t/dia), 42 MW de capacidade de eletrólise, geração solar fotovoltaica PV com 180 MW, com geração anual de energia de 400 GWh/ano.

[5] Enquanto o custo nivelado da produção de hidrogênio (LCOH) a partir de gás natural sem captura (CCUS) varia entre US$ 0,5 a US$ 1,7 /Kg, ou cerca de US$ 1 a US$ 2 /Kg com captura (CCUS), o hidrogênio verde gerado a partir de energia renovável custa cerca de US$ 3 a US$ 8/kg. Estimativas apontam para LCOH similares a partir de 2030. Ver Global Hydrogen Review (2022).

[6] Estimativas da Global Hydrogen Review (2021) apontam para EUR 100 – 120/ t.CO2 em 2030.

[7] Ver IRENA (2019).


KATIA ROCHA. Técnica de Planejamento e Pesquisa IPEA. E-mail: katia.rocha@ipea.gov.br. As opiniões emitidas nesta publicação são de exclusiva e inteira responsabilidade dos autores, não exprimindo, necessariamente, o ponto de vista do Ipea.

NELSON SIFFERT. Diretor ICT – Resel. Email: nfsfooo@gmail.com

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