Josefina Guedes & Eliane Fontes

Quando se aborda o tema de acordos internacionais, imediatamente pensa-se em questões tarifárias, procurando resguardar as tarifas de importação dos produtos fabricados e reduzir as dos não fabricados, dependendo do interesse de cada nação envolvida. Acordos internacionais são complexos e abarcam inúmeros temas, que vão muito além da mera desgravação tarifária para obter acesso a mercados ou tentar restringi-los. De maneira alguma, questiona-se a relevância de questões tarifárias, mas normalmente quando se completa a desgravação tarifária perde-se o objeto. Outros temas, em contrapartida, ganham em importância, como é o caso do regime de origem, que abordaremos no presente artigo.

Regime de origem é o corpo normativo de determinado acordo comercial que estabelece a maneira pela qual a origem será comprovada para que faça jus aos benefícios firmados nesse acordo. Por intermédio do regime de origem, as partes acordam sobre os critérios, exigências e obrigações na matéria origem. A observância desse regime permite que os países possam garantir vantagens comerciais que foram acordadas, sendo considerado importante instrumento de política comercial.

Historicamente, após a Segunda Grande Guerra, em 1947, foi estabelecido o Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio ou Acordo Geral sobre Aduanas e Comércio (GATT), visando promover o comércio internacional e remover ou reduzir barreiras comerciais, tais como tarifas ou quotas de importação, a eliminação de preferências entre os signatários.

O Acordo Geral tratava-se de um conjunto de normas tarifárias destinadas a impulsionar o livre comércio e a combater práticas protecionistas nas relações comerciais internacionais, gerando com isso riqueza entre as nações.

Vinte e três foram membros fundadores, são eles: Brasil, Bélgica, África do Sul, Austrália, Birmânia (ou Myanmar), França, Canadá, Reino Unido, Ceilão, Holanda, Estados Unidos, Chile, China, Cuba, Checoslováquia, Índia, Líbano, Síria, Luxemburgo, Nova Zelândia, Noruega, Paquistão, Rodesia do Sul.

O Acordo inicialmente foi discutido na Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Emprego, em Havana, entre 1947 e 1948, após o fracasso das negociações para criação da International Trade Organization (ITO).

Assim, o Acordo Geral, conhecido como GATT, foi assinado, em Genebra, no dia 30 de outubro de 1947, com vigência a partir de 1º de janeiro de 1948, ficou vigendo até 14 de abril de 1994, quando foi substituído pelos Acordos da Rodada do Uruguai, assinado por 123 países membros, em Marrakesh, criando a entidade internacional denominada Organização Mundial do Comércio (OMC), em 1º de janeiro de 1995.

Em paralelo as negociações multilaterais, nessa mesma época, diversos outros acordos foram surgindo em formatos regionais, uniões aduaneiras, como a União Europeia, ALADI na América Latina, Mercosul, NAFTA, ASEAN, entre outros. Cada um desses acordos estabeleceu seu próprio regime de origem, para assim preservar preferências regionais mais vantajosas para seus parceiros. Além de garantir, o início das cadeias globais de valor das grandes multinacionais e nações.

Esse emaranhado de acordos, no final da década de 90, passou a ser um problema, sendo duramente criticado, uma vez que os regimes de origens elaborados para cada acordo, sejam regionais ou de livre comercio, passaram a ser grandes barreiras ao comércio de bens pelo mundo.

A complexidade dos regimes de origens começou a ser questionada pelas cadeias globais de valor que foram surgindo nas últimas décadas, uma vez que o objetivo desses grandes grupos é fabricar seus produtos em regiões mais competitivas, levando em consideração o custo da mão de obra, logística e incentivos fiscais locais.

Diante de todo esse movimento, foi necessário reavaliar os regimes de origem e buscar uma simplificação, principalmente a redução de conteúdo local, para poder atingir as necessidades desse novo desenho de produção e comércio.

Nesse novo cenário, surgiram novos conceitos de regime de origem, sofisticando-se de tal forma, que a nomenclatura vem resultando numa linguagem complexa para os que não atuam na área internacional, como mercadoria originária, mercadoria obtida, mercadoria integralmente elaborada, transformação substancial, salto tarifário, índice de conteúdo regional e etc.

Em função dessas necessidades, houve um desmembramento das regras de origem, podendo ser classificadas em regimes de origem: Não-Preferenciais ou Preferenciais.

Independentemente do tipo de regras de origem, todos observam conjunto de leis, normas, regulamentos e atos administrativos de aplicação geral, utilizados por cada país para a determinação do país de origem das mercadorias, desde que não relacionados as regras comerciais contratuais ou autônomos acordadas, que prevejam a concessão de preferências tarifárias.

Em relação ao regime de origem não-preferencial, a regra de origem utilizada é o tratamento de nação mais favorecida que está prevista no Acordo Geral da OMC, como também, nas medidas de defesa comercial, nas restrições quantitativas discriminatórias ou quotas tarifárias como salvaguardas, compras governamentais, entre outras.

No âmbito da OMC foi criado um Comitê para estabelecer regras de origem não-preferenciais comuns, para utilização de todos os Países-Membros. No entanto, por diferenças incontornáveis de enfoques econômicos entre os países, o trabalho não pode ser concluído.

Quanto aos regimes de origem preferenciais, usualmente são regras negociadas nos acordos internacionais de comércio, para a concessão de preferências tarifárias entre as partes signatárias, que devem ser cumpridas para que uma determinada mercadoria possa ser considerada originária de um desses países e assim receber tratamento tarifário preferencial.

Existem alguns regimes de origem preferenciais estabelecidos sem negociação entre as partes, quando um país decide conceder, unilateralmente, preferências tarifárias para outros. Um exemplo clássico é o Sistema Geral de Preferências (SGP), pelo qual vários Países Desenvolvidos, se comprometeram, no âmbito da UNCTAD, a efetuar concessões unilaterais preferenciais a Países em Desenvolvimento ou Países Menos Desenvolvidos, podendo estabelecer regras de origens próprias para esses regimes comerciais autônomos ou específicos, com o objetivo principal de auxiliar no desenvolvimento econômico e social e a inserção dos outros países na economia mundial.

Mas a grande maioria das regras de origem preferenciais integram os Regimes de Origem negociados nos acordos de comércio, definindo duas categorias de mercadorias que podem ser consideradas como originárias: (i) bens integralmente obtidos ou produzidos no território de um ou mais países signatários do acordo, e (ii) bens que utilizam algum tipo de insumo importado, mas cumprem com as regras de origem estabelecidas no acordo. São consideradas como originárias:

  • Quando as mercadorias são totalmente obtidas no território dos países-membros do acordo. Normalmente são produtos do reino animal, vegetal ou mineral, recursos naturais ou frutos da caça e pesca extraídos no território dos países-membros, produtos de pesca. Ou podem ser produtos elaborados integralmente no território de qualquer parte quando em sua elaboração forem utilizados, única e exclusivamente, materiais originários das partes.
  • Quando as mercadorias utilizam insumos importados de países não integrantes do acordo. Nesses casos, as mercadorias podem ser qualificadas como originárias, mesmo tendo sido produzidas com materiais não-originários, desde que esses produtos, elaborados total ou parcialmente com insumos de países de fora do acordo, cumpram com as regras de origem estabelecidas no acordo. Estas regras podem ser de cumprir um percentual mínimo de valor agregado no seu território ou de que os produtos são resultantes de um processo de transformação que lhes confira nova individualidade, caracterizada pelo fato de estarem classificados em uma posição tarifária diferente dos materiais não-originários.

Outrossim, as partes envolvidas no acordo podem determinar requisitos específicos de origem, que prevalecem sobre os critérios gerais, os quais têm por objetivo principal dificultar qualquer manobra para o não cumprimento das regras de origem acordadas e assim garantir a correta utilização dos benefícios do acordo.  

A título de exemplo, o acordo de livre comércio Mercosul e União Europeia, o regime de origem foi em grande parte baseado em requisitos específicos por setor econômico ou até por produto, devido as cadeias globais de valor, e demais necessidades das regiões envolvidas, como a manutenção de investimentos e empregos.

Com os acordos que resultaram em uma união aduaneira e considerando também as cadeias globais de valor, foram necessárias outras regras para acomodar tais situações, o que resultou na regra de acumulação de origem, que consiste na possibilidade da mercadoria ser originária, quando os produtores de um país-membro desse acordo ou união aduaneira, considere como originário todos os insumos provenientes dos países sócios do acordo ou união aduaneira.

Dessa forma, a acumulação de origem, constitui um dos elementos mais importantes dos regimes de origem, porque permite integrar as estruturas produtivas dos países-membros do acordo, incrementando o comércio entre as partes signatárias. Para isso, é necessário que se cumpram alguns tipos de acumulação:

“a) Acumulação de mercadorias ou bens: considerar como originário todos os insumos dos países sócios do acordo, desde que esses cumpram os regimes de origem do acordo;

b) Acumulação de processos: no momento da aplicação da regra de origem, considera os territórios dos países-membros do acordo como um único território;

c) Acumulação estendida: permite aos membros de um acordo (A e B) acumular insumos de terceiros países não-membros (C), sempre que esses terceiros países tenham acordos com cada um desses países-membros (A e B). A acumulação pode ser ampla (para todos os produtos) ou somente setorial [1]

Por exemplo, no caso europeu, um produto pode ter seu processo produtivo em 2 (dois) ou mais países e ser considerado produto originário da União Europeia.

Diante da complexidade do tema, somado a dinâmica do comercio exterior, conclui-se que em negociações internacionais para criação de acordo comercial o capítulo destinado às regras de origem deve ter atenção especial e redobrada, pois essas regras subsistirão aos temas tarifários, que podem ser considerados temporários, durando apenas enquanto a desgravação tarifária total não é atingida. 

Por fim, o dinamismo atual, em especial do comércio internacional, onde a cada momento surgem novas necessidades para atender as demandas globais, somados a fatores externos, como guerras e pandemias nos permite dizer que muitas outras mudanças poderão ocorrer no debate sobre regras de origem.


[1] Fonte: Secretaria de Comercio Exterior – SECEX

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