Angelo Prata de Carvalho

Ao passo que a busca por fundamentos históricos ou mitos fundadores insistentemente permanece nos capítulos introdutórios de manuais das mais diversas searas jurídicas, o Direito da Concorrência tende a associar seus fundamentos ao necessário dinamismo dos mercados e, portanto, a cercar-se de atualidade para que permaneça capaz de compreender adequadamente os influxos econômicos e suas repercussões jurídicas. Trata-se, assim, de ramo do direito altamente especializado e fortemente marcado por aportes interdisciplinares e, portanto, por formas distintas de ver-se o mundo que não raro atribuem ao Direito da Concorrência funções aparentemente elementares – como, por exemplo, qual deve ser a sua finalidade.

A busca por sentido da defesa da concorrência é, de fato, uma constante nas discussões sobre a matéria a nível global, porém no contexto brasileiro recebe especial destaque diante de problemas como a construção de uma cultura de concorrência nos mercados nacionais e a sedimentação, ao longo do tempo, de bases institucionais sólidas. Isso porque, apesar de se tratar de seara jurídica positivada no ordenamento brasileiro há várias décadas, remontando a 1945, o Direito da Concorrência brasileiro oscila na eleição de marcos históricos e, em última análise, na adoção de estruturas explicativas para suas finalidades.

A história recente do Direito da Concorrência brasileiro foi, de fato, extremamente marcante, de tal maneira que não raro é tomada apenas como o período compreendido entre a criação do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) como hoje o conhecemos (especialmente a partir da Lei nº. 8.884/1994) e os dias atuais. Tal compreensão, no entanto, acaba por gerar um verdadeiro paradoxo, na medida em que não se ignora a existência de uma vida pretérita desse ramo do direito no Brasil, porém, tornando real o adágio de que “no Brasil até o passado é incerto”, as origens do Direito da Concorrência brasileiro são, no mínimo, nebulosas, com menções esparsas a poucos casos e poucos autores centrais.

Tal cenário ganha aspectos tão marcantes que os primórdios do antitruste nacional se atrela a verdadeiros “mitos fundadores”, como é o caso da contenda entre Agamenon Magalhães e o empresariado brasileiro para a criação do Decreto-Lei nº. 7.666/1945, pejorativamente denominado “Lei Malaia”[1]. A incerteza quanto aos próprios marcos explicativos da disciplina, assim, impede muitas vezes que se retroceda a período anterior a 1994 no intuito de mais bem compreender-se a razão de ser de determinados institutos ou mesmo identificar-se determinadas influências.

Dentre esses mitos fundadores certamente se situa Benjamin Shieber, advogado trabalhista norte-americano, professor da Universidade do Estado da Louisiana, que veio ao Brasil por diversas vezes ao longo dos momentos mais preliminares da formação de nosso Direito da Concorrência. Por diversas vezes ao longo da década de 1960 e mesmo em períodos posteriores, Shieber vem para o Brasil – ora como advogado interessado em novas áreas de atuação, ora como bolsista e pesquisador interessado em estudar a matéria ou mesmo como representante da American Bar Association – e dedica-se a estudar tanto o Direito Antitruste em construção quanto a própria língua portuguesa, contando com o auxílio de professores da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco e da rica biblioteca da instituição (tanto que, mesmo no prefácio de sua obra clássica, faz especial menção às bibliotecárias que o ajudaram).

Esses períodos de verdadeira imersão no nascente Direito da Concorrência brasileiro redundaram no clássico Abusos do Poder Econômico[2], que permaneceu por vários anos como a principal obra de referência no contexto brasileiro e ainda mantém inegável atualidade, seja por seu esforço de sistematização das instituições recém-inseridas no contexto brasileiro, seja por abordar discussões sobre a pertinência de determinadas metodologias que perduram até o presente momento – como, aliás, as finalidades do Direito da Concorrência.

Exemplo disso é a noção de mercado relevante e a polêmica quanto à metodologia para a sua definição, que deve estar constantemente atenta a alterações dos mercados reais com vistas a gerar adequadas representações analíticas, sobretudo em um contexto em que premissas tradicionais são colocadas em xeque, seja pela liberalização dos mercados nacionais à sua época, seja pelo advento da economia digital na atualidade. Daí ser possível dizer que Shieber tinha por intuito endereçar duas questões fundamentais: “o que seriam os mercados nacionais e como devemos julgar se uma empresa domina para os fins da lei”[3]

Cabe recordar, nesse sentido de um dos juristas que esteve em contato com Shieber durante suas vindas ao Brasil, Antonio Cândido de Azevedo Sodré Filho, que veio a publicar, em 1992, seus próprios Comentários à legislação antitruste, com referência então à Lei nº. 8.158/1991, que não tardou a ser revogada pelo advento da mais conhecida Lei nº. 8.884/1994. Na obra em questão, Sodré Filho relata que seu interesse com relação ao Direito da Concorrência adveio justamente de seu contato com Shieber nos anos 1960, concluindo, após rememorar sua experiência nos primeiros anos de Antitruste no Brasil, que “Passados 28 anos, praticamente nada mudou”[4].

A construção de um Direito da Concorrência brasileiro comprometido com as premissas do ordenamento brasileiro e capaz de estruturar seus próprios pressupostos teóricos e analíticos – por mais que retire inspiração do direito estrangeiro, o que, aliás, foi justamente o que inspirou a vinda de Benjamin Shieber dos Estados Unidos para estudar o Antitruste brasileiro – passa fundamentalmente pela compreensão de alguns dos mitos fundadores que, quando desmistificados, talvez contribuam muito mais para a elucidação de alguns problemas contemporâneos do que quando se apresentam como lendas.

Este artigo, aliás, integra uma pesquisa mais extensa, ainda em andamento, que contou com a inestimável e honrosa ajuda do próprio professor Benjamin Shieber, que conta com uma memória invejável, um português impecável e um interesse ainda muito vívido sobre suas contribuições para o Direito da Concorrência brasileiro. Termino este texto, assim, com devido agradecimento por toda sua generosidade nas conversas que tivemos, e que certamente ainda servirão para que não nos esqueçamos de um texto tão influente quanto Abusos do poder econômico.


[1] Ver: BAPTISTA, Luiz Olavo. Origens do direito da concorrência. Revista da Faculdade de Direito da USO. v. 91, pp. 3-26, 1996.

[2] SHIEBER, Benjamin M. Abusos do poder econômico. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1966.

[3] CORDOVIL, Leonor. Comentário: Benjamin Shieber e o antitruste: das lacunas de 1962 à Lei 12.529/2011. Revista dos tribunais. v. 918, pp. 50-60, abr. 2012.

[4] SODRÉ FILHO, Antonio C. de Azevedo; ZACLIS, lionel. Comentários à legislação antitruste. São Paulo: Atlas, 1992. p. 17.

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