Defesa comercial

A necessidade de aprimoramento da avaliação de interesse público em casos de defesa comercial

Fernanda Manzano Sayeg

Nos últimos anos, a principal alteração na legislação brasileira de defesa comercial diz respeito à avaliação de interesse público.

O Decreto nº 9.745, de 2019, transferiu à Subsecretaria de Defesa Comercial e Interesse Público (“SDCOM”) do Ministério da Economia a competência para propor a suspensão ou alteração de aplicação de medidas antidumping ou compensatórias em razão de interesse público, e a Portaria SECEX nº 13/2020 disciplinou o processo administrativo de avaliação de interesse público no Brasil.

Essa avaliação não está prevista nos Acordos da Organização Mundial do Comércio (OMC). Assim, a maioria dos Membros da OMC não adotou previsão específica sobre o assunto em suas legislações. Entre os poucos países que ponderam o interesse público ao aplicar medidas de defesa comercial estão Brasil, Canadá, União Europeia, Nova Zelândia, China, Malásia e Tailândia, os quais incluíram provisões normativas de interesse público em suas legislações.

A avaliação de interesse público tem por objetivo analisar se há elementos que justifiquem a suspensão ou a alteração de medidas antidumping definitivas compensatórias, provisórias ou definitivas. A avaliação de interesse público também pode concluir pela necessidade de não aplicação de medidas antidumping provisórias, caso seja recomendada a aplicação desses direitos na investigação de defesa comercial.

Interesse público é um bastante conceito bastante amplo. A legislação brasileira tenta delimitar esse conceito ao estabelecer que há interesse público sempre que o impacto da imposição da medida antidumping ou compensatória sobre os agentes econômicos se mostrar potencialmente mais danoso quando comparado aos efeitos positivos da aplicação da medida de defesa comercial. O processo administrativo de avaliação pública visa a analisar o eventual impacto da adoção da medida de defesa comercial na oferta do produto em questão no mercado brasileiro, de modo a prejudicar a dinâmica do mercado nacional (incluindo os elos a montante, a jusante e a própria indústria), em termos de preço, quantidade, qualidade e variedade entre outros.

Atualmente, tanto processo administrativo da investigação dumping ou de subsídios quanto o processo administrativo de avaliação de interesse público são conduzidos pela SDCOM, de forma concomitante, seguindo o mesmo rito processual. No caso da avaliação de interesse público, a SDCOM recebe informações, as analisa e pode recomendar: (i) a suspensão da exigibilidade de direito antidumping definitivo ou de compromissos de preços; (ii) a não aplicação do direito antidumping provisório, a homologação de compromisso de preços ou a aplicação de direito antidumping definitivo em valor diferente do recomendado; (iii) a suspensão da aplicação de direito compensatório provisório ou definitivo ou a não homologação de compromissos e a aplicação do direito compensatório provisório ou definitivo em valor diferente do recomendado. Contudo, cabe ao Comitê-Executivo de Gestão da Câmara de Comércio Exterior (GECEX/CAMEX) o encerramento da avaliação de interesse público e da decisão final na investigação de defesa comercial, em caso de determinação positiva de aplicação ou prorrogação de medida antidumping ou compensatória[1].

Sem querer adentrar na discussão se o argumento de interesse público seria compatível com a lógica da defesa comercial – em que medida o reconhecimento de uma prática desleal de comércio como o dumping comporta uma mitigação? – há alguns aspectos do processo administrativo de avaliação de interesse público que não só podem como devem ser aprimorados, de modo a possibilitar que essa análise seja ainda mais precisa e completa.

No caso de investigações originais, de modo geral, o prazo para envio da resposta ao questionário de interesse público é o mesmo prazo para envio da resposta ao questionário do importador e do exportador. Na maioria das vezes, empresas acabam dedicando muito tempo ao preenchimento do questionário do importador e/ou do exportador a ser apresentado na investigação de dumping ou de subsídios, sem o qual não é possível obter uma margem individual de dumping, e não conseguem se dedicar a obter todas as informações solicitadas no questionário de avaliação de interesse público.

As informações solicitadas no questionário de avaliação de interesse não são informações fáceis de ser obtidas, sobretudo por importadores, que são os principais interessados em evitar a aplicação ou suspender uma medida de defesa comercial em vigor. Ao contrário do questionário do importador e do exportador, que devem ser preenchidos com informações contábeis e do dia-a-dia das empresas, o questionário de avaliação de interesse público solicita informações de natureza concorrencial e de mercado que muitas vezes são desconhecidas por aqueles que não são fabricantes. Basta lembrar que o questionário solicita que sejam apresentados dados de natureza concorrencial como o cálculo de índices de concentração de mercado (em especial do HHI) considerando produção nacional (nos termos de defesa comercial), importações e substitutos e barreiras à entrada. Essa dificuldade é ainda maior quando se trata de um bem que é apenas um dos diversos bens classificados em uma determinada sub posição da NCM, já a que é com base nessa classificação que é possível obter parte das informações publicamente disponíveis sobre determinado produto.

Ao contrário da que ocorre em uma investigação de defesa comercial, não há peticionário nas avaliações de interesse público em investigações originais. O fato de não haver empresa ou associação faz com que o processo administrativo não receba tantas informações nem tanta atenção das autoridades, o que pode resultar em uma avaliação de interesse público incompleta, imprecisa e superficial. Isso é extremamente prejudicial à sociedade como um todo, já que a aplicação de direito antidumping ou compensatório pode resultar no encarecimento do produto objeto da investigação, com reflexos nos demais bens que utilizam esse produto em sua fabricação.

É importante notar que a avaliação de interesse público representa um custo adicional às partes, visto que, como desconhecem as informações solicitadas recorrem à contratação de advogados, economistas e consultorias especializadas, bem como de institutos de pesquisas e relatórios setoriais, para obter as informações solicitadas no questionário.

Não há dúvidas que, dada a relevância da verificação dos efeitos das medidas de defesa comercial sobre o interesse público, a insuficiência de dados substantivos que subsidiem devidamente o processo decisório pode prejudicar a funcionalidade dessa avaliação. Assim, é importante que a sociedade debata formas de tornar essa análise ainda mais eficaz.

Entre as possíveis sugestões, estão a ampliação do escopo da análise – que, na prática, está limitada aos itens estabelecidos no questionário de avaliação de interesse público – para que ela seja adaptável a cada tipo de produto. É evidente que o impacto de uma medida antidumping sobre um bem intermediário deve ser analisada de forma diferente do impacto de uma medida antidumping sobre um bem final. Da mesma forma, há questões específicas relacionadas a produtos agrícolas que não se aplicam a produtos químicos e vice-versa.

Outra medida que pode fazer muita diferença é um maior engajamento da SDCOM não só na análise, mas também na obtenção das informações. Hoje observa-se uma grande passividade na condução da avaliação de interesse público. Não é aceitável que a SDCOM decida que não há impactos apenas porque não recebeu informações das partes, as quais muitas vezes não dispõem dos dados ou de condições econômicas para levantá-los.

Por fim, os aspectos atinentes à concorrência doméstica que fazem parte da análise também deveriam receber mais atenção do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE). Embora o CADE seja consultado nas avaliações de interesse público, suas análises são superficiais e em nada se assemelham àquelas analises profundas realizadas em atos de concentração ou investigações de cartel. Da mesma forma, outros órgãos da administração pública poderiam ser engajados, de modo que a avaliação de interesse público seja cada vez mais precisa e completa.


[1] Sempre que a SDCOM concluir por a uma determinação negativa de aplicação ou prorrogação de medida antidumping ou compensatória na investigação original ou na revisão de final de período, caberá à Secretaria de Comércio Exterior (“SECEX”) o encerramento concomitante da investigação de defesa comercial e da avaliação de interesse público, por perda de objeto.