Juliana Oliveira Domingues

Colunista

Juliana Oliveira Domingues

É professora doutora de Direito Econômico da Universidade de São Paulo (FDRP/USP), aprovada em concurso público de provas e títulos, e co-diretora regional da Academic Society for Competition Law (Ascola). É graduada em Direito pela Universidade Estadual de Londrina, mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina e doutora em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulol. Foi Visiting Scholar da Georgetown University Law School, como International Scholar in Residence da American Bar Association (Antitrust Section – única brasileira selecionada). Foi secretária Nacional do Consumidor (Senacon) do Ministério da Justiça e Segurança Pública, presidente do Conselho Nacional de Defesa do Consumidor e do Conselho Nacional de Combate à Pirataria, assim como diretora do Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor. É cofundadora da Rede Women in Antitrust (WIA). Possui dezenas de livros e artigos. Seu livro “Direito Antitruste”, publicado pela Ed. Saraiva, foi considerado o “melhor livro jurídico do ano” em 2008 (Prêmio Troféu Cultura Econômica). Já o livro “Brazilian Competition Law: A practitioner’s Guide”, pela Wolters Kluwer, é referenciado internacionalmente. Na área de Direito Concorrencial recebeu o Prêmio Ibrac-Esso, em 2004, e os Prêmios Ibrac-Tim de 2013 e 2018. Professora de Direito da Concorrência convidada de diversas instituições de ensino superior, é líder do Grupo de Pesquisa de Concorrência e Inovação da FDRP/USP. É mãe da Gloria (2011) e da Sofia (2014).

Muito Prazer, Regulação!

Juliana Oliveira Domingues

 “What Is Regulation?” Barak Orbach foi explícito sobre o foco do seu paper com esse título[1].

 

Quando trazemos esse tema, em 2023, muitos ainda podem ficar surpresos com o fato de haver uma recorrente confusão terminológica. Quando falamos, então, de “coarregulação”, “autorregulação”, “regulação responsiva”, “análise de impacto regulatório”, “autorregulação regulada”, grandes e repetidas interrogações surgem para boa parte da comunidade jurídica.

Não deixa de ser um alento e – até mesmo – um sopro de esperança, observar que no berço do capitalismo persistam essas dúvidas.

Afinal, o que todos sabem sobre regulação?

A natureza evasiva do termo “regulação” é, em grande parte, produto de confusão. Obviamente, estamos tratando de mais um conceito abstrato. Não sem motivos, vemos opiniões sobre o que seria o “escopo desejável” de poderes regulatórios ou de políticas regulatórias.

Da mesma forma, há quem veja a regulação puramente como uma intervenção indesejável do Estado. Dentro de referido grupo, encontramos os que entendem “regulação” como “intervenção na liberdade e nas escolhas”. Há quem defenda que a regulação tem o poder de definir as opções disponíveis e manipular os incentivos.

Porém, haveria uma espécie de regulação desejável?

No Brasil, de um lado, identificamos aqueles que querem sempre “mais regulação” e que desejam ver com frequência “as mãos” do Estado. De outro, também temos crenças e percepções críticas sobre a forma de intervenção (por meio da regulação) que coloca em xeque a necessidade de haver intervenções regulatórias.

E, não podemos nos esquecer do comportamento free-rider dos poucos (ou nada) preocupados com o adequado emprego da regulação: ora a sugerem, ora a repelem, ao sabor de seus interesses ou agendas[1].

Estudiosos no mundo que já se debruçaram sobre o significado do termo “regulação” produziram várias definições. Em boa parte dos estudos, o termo “intervenção” aparece.  Outro caminho, baseia-se em crenças pessoais para explicar o conceito, o que acaba por criar definições informais.

Em nosso cenário regulatório, há destaque à atuação das agências reguladoras, uma vez que os debates se centraram nelas, ao longo dos últimos anos, tal como nos EUA.[2] Outra referência popular que atrai críticas à regulação se refere ao seu uso para atendimento aos grupos de interesse.[3]

De acordo com George Stigler, a regulação, “[…] é adquirida pela indústria e é projetada e operada principalmente para seu benefício.”[4] Já Richard Posner, tal como estaca Orbach, trouxe uma versão mais “refinada” dessa percepção: “[…] regulação [é] um produto alocado de acordo com princípios básicos de oferta e demanda […] podemos esperar que um produto seja entendimento intuitivo da palavra “regulação”: intervenção governamental no domínio privado ou norma jurídica que implementa tal intervenção. A regra de implementação é uma norma jurídica obrigatória criada por um órgão do Estado que pretende moldar a conduta de indivíduos e empresas.[5]

Vale destacar que o “órgão do Estado”, isto é, o regulador, pode ser qualquer órgão legislativo, executivo, administrativo ou judicial que tenha o poder de criar uma norma jurídica vinculante. Essa definição geral é bem mais ampla do que “restrições”, “regras de agências administrativas / reguladoras”, ou “leis que atendem a grupos de interesse”.

Nesse sentido, Orbach foi muito feliz em resgatar esse debate para centrar a definição na “intervenção no domínio privado”, em vez de “intervenção nas escolhas”. O ponto essencial é observar que, teoricamente, pode-se considerar qualquer influência na conduta como interferência nas escolhas. No entanto, o significado “da interferência nas escolhas” é de difícil consenso. Seja como for, não podemos fugir do fato que regulação tem ligação com a intervenção no domínio privado.

Em resgate ao tema, cabe rememorar a definição de regulação como intervenção no domínio privado trazida, em meados do século XIX, por John Stuart Mill quando descreveu a intervenção governamental nos assuntos da sociedade[6].

Mill argumentou que a fonte da controvérsia era, em grande parte, uma divisão ideológica entre dois grupos na sociedade: 1) […] os defensores da interferência [i. e. que acreditam que o governo deve agir] onde quer que sua intervenção seja útil” e; 2) os que restringem a atuação do governo “[…] à proteção da pessoa e da propriedade contra a força e a contra a fraude.”[7]

O resgate de Mill pode iluminar como as pessoas combinam suas visões de políticas regulatórias desejáveis. Veja-se essa passagem: “[se] os venenos nunca foram comprados ou usados ​​para qualquer finalidade, exceto a prática de assassinato, seria correto proibir sua fabricação e venda”. Por exemplo, os venenos podem “ser procurados não apenas para propósitos indecentes, mas também para fins úteis, e restrições não podem ser impostas em um caso sem operar no outro”. No exemplo acima, Mill recomenda como precaução rotular com alguma palavra (ou se fazer alguma referência) o potencial perigo do produto, sem violação da liberdade, uma vez que “o comprador deve saber que a coisa que possui tem qualidades venenosas.”[8]

Ora, a intervenção do Estado no domínio privado – subproduto de nossa realidade imperfeita e limitações humanas – por meio da regulação apenas ocorre porque existem “venenos” e os atos de regulação podem ter “efeitos venenosos” quando mal utilizados.

Nosso mundo é complexo, possui recursos finitos e as interações sociais estão mergulhadas nas mais diversas assimetrias. É verdadeira a premissa da análise econômica de que o indivíduo, portador de limitada racionalidade e informações incompletas, comporta-se procurando sempre maximizar o seu bem-estar. Certo também é que, não raras vezes, o mercado falha, ou seja, o subproduto da comunicação entre demanda e oferta pode causar danos para muitos e riqueza para poucos.

É justamente em resposta a essas imperfeições, limitações, ou mesmo falhas que se estruturou a ideia de regulação econômica. Reconhece-se o problema e, então, procura-se enfrentá-lo de maneira propositiva visando mitigá-lo e converter as toxinas naturalmente resultantes das falhas em promoção de eficiência econômica e, até mesmo, do bem-estar geral (em alusão à ideia de equilíbrio geral).

Numa perspectiva metalinguística, vale dizer, as mesmas imperfeições e limitações, porém, garantem o caráter imperfeito e limitado da regulação. Nossas falhas humanas permitem, por exemplo, regulações excessivas e redundantes, e permitem – sim! – a adoção de regulações que atendam aos grupos de interesse (em sua mais ampla conceituação) em linha com James M. Buchanan.[9]

O desafio, portanto, é lidar com o fato de que há imperfeições e limitações imanentes à sociedade e, portanto, imanentes também à atividade estatal. Ambas prejudicam a tomada de decisões tanto no plano dos agentes econômicos em si, quanto no plano da atividade estatal de regulação econômica.

Nesse sentido, em linha com George Stigler, nada resta a ser feito?

Negativo. A ênfase de Stigler às limitações da regulação e sua tendência de captura, posteriormente temperada com o realismo de Buchanan ao escancarar a fragilidade humana de raramente conseguir sacrificar o interesse pessoal em favor do coletivo, conforme determina o mandato estatal, leva-nos a escolher o caminho inevitável da moderna ideia de regulação econômica baseada em dados empíricos, apresentada por Cass R. Sunstein, o mesmo que recentemente relembrou a importância de se compreender as motivações dos próprios reguladores [10].

Em suma, é seguro utilizar as instituições normativas adequadas da Regulação com a devida parcimônia. Em outras palavras, devemos aceitar o fato de que a regulação é uma ferramenta valiosa a serviço da atividade estatal que veio para ficar. Assim, tanto melhor será atribuirmos foco em compreendê-la bem e trabalharmos para maximizar seus benefícios e minimizar seus custos.


[1] Exemplo disso vimos com a alegação de que o PIX prescindiria de AIR (tema tratado em outra oportunidade neste portal). Cf. DOMINGUES, Juliana O. Pix e Air – quando a liberdade econômica desperta o ilusionismo e levanta cortina de fumaça. Disponível em: <https://webadvocacy.com.br/2022/09/26/pix-e-air-quando-a-liberdade-economica-desperta-o-ilusionismo-e-levanta-cortina-de-fumaca1/> Acesso em: 01 jun. 2023.

[2] Em adição, Orbach cita as leis criadas pelas cortes – common law – como uma forma tradicional de regulação. Veja-se: ANDREW P. MORRISS et. al.., Regulation by Litigation (2008); Regulation Through Litigation (W. Kip Viscusi ed., 2002); POSNER, Richard A. Regulation (Agencies) Versus Litigation (Courts): An Analytical Framework, in Regulation Vs. Litigation 11 (Daniel P. Kessler ed., 2010).

[3] Veja-se, também: ORBACH, Barak. Invisible Lawmaking, 79 Uni. Chi. L. Rev. Dialogues 1 (2012).

[4] No mesmo sentido: PELZMAN, Sam. Toward a More General Theory of Regulation, 19 J. L. & ECON. 211 (1976).

[5] Tradução Livre. POSNER, Richard A. Theories of Economic Regulation, 5 Bell J. Econ. & Mgm’t Sci. 335, 344 (1974). As visões de Richard Posner sobre regulação evoluíram, neste texto:  RICHARD A. Posner, The Crisis of Capitalist Democracy 1-2 (2010), p. 12: “From a normative economic standpoint […] the goal of regulation, whether by courts or by agencies, is to solve economic problems that cannot be left to the market to solve.”.

[6] MILL; John Stuart, 2 Principles of Political Economy 525-71 (1848).

[7] Id. Ibid.

[8] MILL, John Stuart. On Liberty, p. 66-67 (1859). Id. p. 171-73.

[9] Buchanan, James M. Politics without Romance: A Sketch of Positive Public Choice Theory and Its Normative Implications. (James Buchanan and Robert Tollison Eds). The Theory of Public Choice II 11, 11 (Michigan 1984).

[10] Nesse sentido vale conferir o artigo: SUSTEIN, Cass R. Interest-Group Theories of Regulation: A Skeptical Note. Disponível em https://papers.ssrn.com/sol3/papers.cfm?abstract_id=3829993. Acesso em: junho de 2023. Em adição, veja-se: “[…] George Stigler, professor norte-americano, responsável pela “Teoria Econômica da Regulação” […]aborda a captura de agentes públicos – reguladores e legisladores – por grupos de interesse; por isso, é também conhecida como “teoria da captura”. Para Stigler, ao invés de regular os setores visando melhorar seu funcionamento e dirimir práticas danosas, a regulação atenderia às demandas dos agentes regulados levando ao desvirtuamento da estrutura do Estado e dos recursos públicos. Essa visão crítica das agências reguladoras foi revisitada recentemente por Cass R. Sustein, professor da Universidade de Harvard, em seu “Interest-Group Theories of Regulation: A Skeptical Note”. Mencionando diretamente Stigler, Sustein rebate a noção de que a regulação não visaria atender interesses públicos, buscando demonstrar que, se os reguladores e legisladores adotam determinado posicionamento, é porque acreditam que tal norma ou política terá resultados benéficos. […] Apesar da maneira como Sunstein aborda o problema parecer lhe colocar em contraponto direto com Stigler e sua teoria da captura, uma aproximação entre os autores pode ser feita: por vezes, a informação a que os reguladores têm acesso é determinada pelos grupos de que fazem parte. Veja-se, por exemplo, legislações propostas durante a pandemia que buscaram moratórias e interferência nos preços, partindo de determinada visão, não necessariamente vinculada aos núcleos de informações cientificamente embasados, dissociadas da implementação de melhores práticas adequadas à realidade. De toda forma, a abordagem de Sunstein deixa claro, também, qual deve ser o papel das agências reguladoras (aqui estendemos aos reguladores em geral): adotar políticas que tenham consequências benéficas, se não para o setor privado, para o ambiente regulatório e para o usuário (consumidor) final. In: DOMINGUES, Juliana Oliveira; Miranda; Isabella Dorigheto. O Retorno de Jedi: Um olhar do Século XXI à Captura dos Reguladores. Jota.  Veja-se também:Sunstein, Cass R., Empirically Informed Regulation (2011). University of Chicago Law Review, Vol. 78, No. 4, 2011, Harvard Public Law Working Paper No. 13-03.

 

 

 


[1] ORBACH, Barak, What Is Regulation? (September 7, 2012). 30 Yale Journal on Regulation Online 1 (2012), Arizona Legal Studies Discussion Paper No. 12-27.

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