Maxwell de Alencar Meneses

Falar algo inédito é muitas vezes uma grande dificuldade, especialmente em ambientes altamente competitivos. Essa dificuldade do ineditismo se intensifica ainda mais para alguém que não se encaixa rigidamente no domínio específico da Defesa da Concorrência. A exemplo deste autor, um “nem-nem” – nem economista, nem advogado, mas sim um cientista da computação.

Para preencher essa lacuna deixada por esse certo deslocamento, nada mais apropriado para um bom cientista do que observar ao redor, inclusive para cima. A prática da observação de objetos de estudo e comparação é parte fundamental da boa ciência, mesmo que, por vezes, essa abordagem esteja sendo desafiada pela ascensão de teorias desprovidas de evidências concretas, fundamentadas em opiniões midiáticas.

Soma-se a isso o fato de que, na Ciência da Computação, entre muitas coisas, estuda-se como representar computacionalmente o mundo. Por esse motivo, tende-se a se tornar observador de padrões repetitivos, no caso, inerentes à concorrência, que podem ser eventualmente convertidos em algoritmos.

Nesse olhar ao redor, um padrão repetitivo observado é o uso da lista tríplice, ou triplicidade, já mencionada no artigo  ‘O Bom, o Mau e o Feio‘ e agora outra vez reconhecido no livro ‘Comer, Rezar e Amar’, de Elizabeth Gilbert. Este livro vendeu milhões de cópias e foi adaptado para o cinema, obtendo êxito financeiro e sendo interpretado por ninguém menos que Julia Roberts. Algo tão bem-sucedido não deve passar despercebido, especialmente quando se trata de analisar a concorrência, considerando a significância dos negócios em um cenário tão disputado como o literário e cinematográfico.

Sendo assim, com este texto, propõe-se uma transmutação: uma correspondência biunívoca entre “Comer, Rezar e Amar” e sua versão hipotética parodiada, “Concorrer, Regular e Programar”. Pelo menos para fins de estudo, as viagens, tema da obra literária em questão, teoricamente teriam o poder de proporcionar uma perspectiva diferente sobre os objetos de estudo e sobre a vida, graças ao distanciamento ou à aproximação calculada e planejada desse mesmo objeto que elas podem proporcionar.

Um experimento compartilhado, que não retrata a opinião de nenhuma instituição em particular, nem tampouco a desse autor, sendo meramente um livre teste de hipóteses. Desse modo, utiliza-se da literatura como base para uma análise crítica, assim como, e apesar da análise de Posner, escrita em ‘Law and Literature’.

Concorrer | Comer

Iniciando a jornada pela dimensão do prazer de concorrer, lembra-se que muito se fala a respeito de casos e teorias sobre Defesa da Concorrência, mas nem tanto sobre o âmago do que é, enfim, o objeto dessa defesa: o que se pretende proteger; o que é concorrer? De acordo com o linguista Aldo Bizzocchi, “concorrer”, do latim concurrere, é literalmente “correr juntos” e referia-se à competição esportiva da corrida na Roma antiga[i].

Outro aspecto a se notar é que, em espanhol e outras línguas, o termo concorrência é representado pelo vocábulo competencia, sendo que, para nós brasileiros, o falso cognato competência remete diretamente à capacidade de vencer.

Mas como algo tão fundamental na hierarquia das necessidades humanas, como o alimento, poderia ser relacionado à ideia de concorrência? Em um primeiro momento, parecem ser ideias e conceitos distintos, mas não são. Como sabemos, a busca por alimento é ancestralmente o que moldou as relações humanas entre os caçadores-coletores, onde o homem[ii] ia caçar, competindo por alimento; às vezes ganhando na competição, outras vezes sendo o alimento de seus concorrentes.

De acordo com Darwin, que estudou essa dinâmica durante suas próprias viagens de descoberta, acabou percebendo que o concorrente mais adaptado prevalece. Por outro lado, Moshe ben Amram, em sua travessia pelo deserto e em sua obra denominada Torah, atribui ao homem a característica de ser superior por projeto. Tanto que, ao avaliar os potenciais concorrentes que poderiam compor uma joint venture com ele, a solução encontrada foi promover uma cisão fifty-fifty. A retirada de parte de suas capacidades produtivas, que até então estavam concentradas sob um único controle, formando assim um ser independente.

Portanto, o prazer de comer está intrinsecamente ligado aos instintos de sobrevivência de nossa espécie e, por que não dizer, aos instintos natos de concorrência e competência, que vêm de fábrica, “built-in”[iii] no nosso “firmware”[iv]. O cérebro associa um ao outro: comi porque venci! Daí surge o estímulo do prazer pelo ato de comer, instigando a competir novamente para experimentá-lo mais uma vez, pois, do contrário, seria a morte — a fonte fulcral de todos os medos e ansiedades humanas.

O ato de concorrer e de comer, se considerados como conceitos fundamentais relacionados às necessidades humanas e sendo estes inter-relacionáveis, suscitam a avaliação de como as ações de um Órgão de Defesa da Concorrência, como o Cade, podem ter exercido o papel de preservar ambos.

De fato, não são poucas as análises realizadas pelo Conselho nesse sentido, como, por exemplo, na avaliação do Ato de Concentração (AC) “Carguero”, quando analisou uma joint venture (JV) entre concorrentes nos mercados relacionados ao segmento de commodities agrícolas, que envolvia um software (programa) de intermediação de frete rodoviário, ou seja, uma plataforma digital.

Como esperado, a atuação da Defesa da Concorrência em setores como esse se mostra crucial para, se não garantir, em última instância, promover um ambiente concorrencial saudável capaz de mitigar condições que minem o acesso a alimentos, seja pela oferta ou pelos preços que possam ser deliberados por monopólios.

Também no mercado de commodities agrícolas, destaca-se o inédito AC (Cargill, ADM, LDC e SusteinIt), que envolve alguns dos mesmos grupos econômicos do AC Carguero. Eles formaram uma JV para criar uma plataforma de software multistakeholder, visando rastrear métricas de sustentabilidade nas cadeias de suprimentos alimentícios e agrícolas, como emissões de carbono, desmatamento, água, proteção infantil, trabalho forçado e diversidade, para atender à crescente demanda por informações detalhadas devido a regulamentações, legislações e exigências dos clientes.

O escrutínio desse caso pelo Cade envolveu a averiguação de riscos concorrenciais que poderiam eventualmente interferir na oferta de alimentos, práticas de greenwashing, troca de informações sensíveis, barreiras de entrada ou outras distorções de mercado. O Cade, felizmente, reconheceu seu papel de proteger a concorrência e não se envolver diretamente em questões sociais como a sustentabilidade.

Regular | Rezar

Como visto, as regulações estão causando preocupações nas empresas a ponto de elas construírem sistemas complexos para monitorar suas cadeias de fornecimento e poder dispor dessas informações aos seus demandantes.

Destaca-se que a regulação ocorre proficuamente também nos ambientes computacionais. As regras são amplamente aplicadas de forma semelhante ao mundo natural, com o objetivo de proteger os usuários. No entanto, ao fazer isso, consomem recursos computacionais. Quanto mais regras e proteções são implementadas, mais lentidão, geração de processos de monitoramento concorrentes e arquivos de controle ocorrem, tornando humanamente impossível verificar esses arquivos manualmente.

Cabe, portanto, à reflexão que, se o excesso de regulação pode prejudicar e até paralisar máquinas capazes de processar milhões de instruções por segundo, o que esse excesso pode gerar na condição humana, seja individual ou institucional?

No seu livro, Liz Gilbert relata como cruzou o mundo em busca de conhecer a Deus e encontrar guias espirituais. Ela descreve como se dedicou à repetição de mantras por horas a fio, buscando alguém ou algo que lhe indicasse o que seria o correto, uma regulação de qualidade.

Sentimento parecido foi percebido no saudoso cantor Cazuza, que cantava ou contava que precisava de uma ideologia para viver, expressando um desejo por um conjunto de princípios, crenças ou valores pelos quais valia a pena lutar, o que poderia ser uma filosofia de vida, uma visão política, uma causa social ou qualquer conjunto de ideias que desse significado e direção à sua existência. Já Caetano Veloso cantou em 1968, vivenciando o império da regulação do regime vigente na época, “É proibido proibir”, criticando o conformismo político da mídia.

Regulações que atrapalham até mesmo a regra que resume todas as outras, o amor, na declaração de Yeshua: “Ame o seu próximo como a si mesmo”, e que se manifesta na solidariedade ao próximo que sofre.

 O Cade, mesmo não sendo visto como um regulador propriamente dito, age de forma muito consciente nesse sentido. Não atua para embaraçar o mercado com um emaranhado de exigências, mas trabalha para tornar o ambiente concorrencial previsível, auscultando a sociedade e criando guias e decisões com o objetivo de orientar e sanar pontos não totalmente compreendidos pelo mercado.

Um exemplo disso são seus guias de análise, que publicam as regras utilizadas para suas avaliações de mercado. O baixo índice de reprovação de atos de concentração é um possível indicador de que as partes, já bem informadas, fazem um cálculo empresarial antecipando-se aos limites da bem compreendida jurisprudência do Conselho.

Programar | Amar

A viagem de Elizabeth, descrita em seu livro, se encerra na etapa do “Amar”, em que ela narra o relacionamento que tem com um empresário brasileiro na Indonésia. Nesse ato, é como se os dois se tornassem um só. Para comparar isso com “Programar”, além do sufixo da palavra, talvez seja necessário ter tido a experiência de um “relacionamento” com uma máquina computacional. Assim como em um relacionamento humano, é difícil e requer preparo e dedicação para entrar no mundo das máquinas e inserir seus pensamentos em forma de algoritmos, tornando-se, de certa forma, um só com esse ente.

Com base no conceito de amor expresso por Saulo de Tarso, aqui parafraseado, o amor é caracterizado por paciência, bondade, humildade, respeito, abnegação, autocontrole, perseverança, verdade, resiliência e durabilidade. Não seria difícil encontrar um profissional da área de programação que afirme que, devido ao grau de dificuldade, é necessário amar muito o que se faz para se manter nessa área.

Curiosamente, a primeira pessoa programadora foi a Condessa de Lovelace, filha única de Lord Byron, uma matemática e escritora. Ada Lovelace[v] utilizava uma estratégia que ela chamava de “ciência poética”[vi], integrando imaginação e ciência, o que inicialmente considerava um dever, mas que despertou nela alegria e paixão.

Essa abordagem a levou a explorar a Máquina Analítica, examinando como indivíduos e sociedade se relacionam com a tecnologia. Ada acreditava que intuição e imaginação eram fundamentais para aplicar conceitos matemáticos e científicos de forma eficaz, valorizando a metafísica tanto quanto a matemática para explorar “mundos invisíveis ao nosso redor”.  

As ideias de Ada demonstram a interrelação entre amar, programar e rezar, já desde a década de 1840.

De lá para cá, pode-se entender que nenhuma outra área do conhecimento humano evoluiu tanto e gerou tanta disrupção na sociedade, influenciando o binômio “Concorrer | Comer”, como vimos pelas plataformas digitais alvo de análise antitruste no Cade. A programação e seu efeito, o programa, tornaram-se um fator preponderante para a existência humana e, como tal, de fato requerem uma avaliação necessária em relação aos seus riscos concorrenciais.

Quanto a isso, o Cade vem diuturnamente cumprindo seu papel nesse sentido, seja apurando se o Google estaria privilegiando, nos resultados da busca orgânica, os seus próprios sites temáticos, como o Google Shopping, em detrimento de sites concorrentes, seja por meio de Inquéritos Administrativos, como o caso Google Android e caso Google News, em desfavor do Google, bem como o caso Jedi Blue, em desfavor do Google e da Meta, instaurados para apurar possíveis indícios de infração à ordem econômica verificados em cada um daqueles autos.

Além disso, o Cade está apurando suposto abuso de posição dominante por parte do Google e da Meta relacionado à utilização indevida das plataformas Google, YouTube, Facebook e Instagram para a realização de campanhas em desfavor do Projeto de Lei n° 2630 (“PL das Fake News”).

Concorrer | Regular | Programar ≡ (fogo, água e ar)

Neste ponto, cabe uma reflexão: uma expansão da mente no sentido de considerar que a programação não se restringe ao universo tecnológico. Muito antes disso, o próprio homem é uma máquina capaz de ser programada e tem sido. Não por acaso, vários recursos tecnológicos são criados mimetizando a máquina humana, e não o contrário.

Assim como a aviação e o voo foram concebidos por meio da observação dos pássaros, a computação utiliza a observação de habilidades humanas, como aprendizado, comandos, redes neurais, inteligência, lógica, raciocínio, memória e comunicação, além de objetos e recursos do cotidiano, como arquivos, pastas, programas, agenda e processos, entre outros.

Nesse sentido, vimos crescer uma programação do pensamento humano de modo homogêneo e dominante, com os mesmos comandos e instruções, percebidos por palavras de ordem e agendas unificadas que se tornam universais. Como observado em tantas outras questões que estão pululando na mente das pessoas sem saber ao certo por quê, sem averiguação de sua coerência com os fatos e com o debate cancelado, como quem expulsa um vírus de computador.

Algo que traz nuances de uma concorrência desleal de ideias, uma crença que lembra a religiosa em verdades absolutas e uma robotização programada das massas. O que faz pensar se uma das causas da pressa de regular a última fronteira da tecnologia humana, os avanços recentes no campo da inteligência artificial, teria algo a ver com manter o controle da programação vigente.

Portanto, o trinômio que intitula este artigo pode ser comparado às forças da natureza, como fogo, água e vento (ar), em termos de impacto na nossa sociedade. Sendo assim, seu domínio, de maneira desequilibrada por quem quer que seja, deve ser alvo de discussões e ponderações constantes, como a que aqui se faz. O objetivo não é necessariamente dizer o que está certo ou errado, mas fomentar uma visão crítica sobre a verdadeira natureza dessas questões e a utilização que tem sido dada a elas, antes que a distinção entre homem e máquina esmaeça a ponto de ocorrer a padronização irreversível da característica mais humana: sua individualidade e singularidade.


[i] Bizzocchi, A. (2018). Tag: concorrer. Fonte: DIÁRIO DE UM LINGUISTA: https://diariodeumlinguista.com/tag/concorrer/

[ii] LEOPOLDI, J. S. (2004). As relações de gênero entre os caçadores-coletores. Fonte: Portal de Periódicos da UFG: https://revistas.ufg.br/fcs/article/download/925/1171/5429

[iii] Essencialmente, “built-in” indica que algo está integrado ou embutido no sistema principal, em vez de ser uma adição opcional.

[iv] Firmware é um tipo de software que está incorporado em um dispositivo de hardware para controlar seu funcionamento. permanente no dispositivo, como uma memória flash, e é carregado durante a inicialização do dispositivo.

[v] Ada Lovelace. (2024, fevereiro 6). Wikipédia, a enciclopédia livre. Retrieved 13:43, fevereiro 6, 2024 from https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Ada_Lovelace&oldid=67438046.

[vi] Toole, B. A. (2010). Ada, the enchantress of numbers: Poetical science. Betty Alexandra Toole.


Maxwell de Alencar Meneses – cearense radicado em Brasília há 35 anos, é Cientista da Computação, MBA Especialista em Gestão de Projetos, Especialista em Defesa da Concorrência e Direito Econômico, atua no Cade na análise de Atos de Concentração e anteriormente no Projeto Cérebro, na área de Cartéis.  Participou e acompanhou por 30 anos a concorrência no mercado de inovação e tecnologia no âmbito do Governo Federal e em organizações líderes de mercado, como Fundação Instituto de Administração, Xerox do Brasil, Computer Associates, Bentley Systems e Vivo.


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