Josefina Guedes

Colunista

Josefina Guedes

Diretora da GBI Consultoria Internacional e fundadora da antiga Guedes e Pinheiro, é economista, com formação especializada na área de Comércio Exterior, adquirida em Curso de Capacitação em Negociações Internacionais na Florida University – EUA e ao longo de 12 anos de atividade em cargos de chefia em órgãos do governo relacionados com comércio exterior, nas áreas de negociações internacionais e defesa comercial, tendo participado da reforma da Tarifa Aduaneira do Brasil, da introdução e implementação dos Códigos antidumping, de salvaguardas e subsídios e medidas compensatórias no Brasil, atuando como representante do Governo Brasileiro nas negociações do GATT. Foi professora de legislação de comércio exterior na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e da Universidade Federal de Manaus, e de comércio internacional da Universidade Veiga de Almeida, do LLM do IBMEC e do MBA de comércio internacional da Universidade Cândido Mendes. É co-autora do livro “Antidumping Subsídios e Medidas Compensatórias”, publicado pela Ed. Aduaneiras, em sua 3º edição, e colaboradora do livro “Guerra Comercial ou Integração Mundial pelo Comércio? A OMC e o Brasil”. Membro da Coalizão Empresarial Brasileira (CEB), da Câmara de Comércio Brasil-Estados Unidos de Miami, da Câmara Brasil-Alemanha, do Conselho de Relações Internacionais da FIRJAN e do Conselho de Diretores da Associação de Comércio Exterior do Brasil – AEB.

O Regime de Origem e suas complexidades- Parte 2

Josefina Guedes & Eliane de Souza Fontes

Em nosso primeiro artigo, focamos na importância dos Regimes de Origem e sua principal função nos acordos internacionais. Nesse segundo artigo, vamos entrar em alguns detalhes do Regime, bem como nas suas complexas funções, sendo a mais importante delas como instrumento de política comercial.

Como puderam observar, os Regimes de Origem fazem parte do comércio internacional há várias décadas, tamanha a sua importância. Com o surgimento das cadeias globais de valor nas últimas décadas, maior complexidade para a determinação da origem de um bem produzido, pois é através de regras bem claras e definidas, que um produto poderá usufruir.

Vimos que as regras de origem são exigências produtivas para que as mercadorias sejam consideradas originárias, normalmente para acessar os benefícios e preferências tarifárias de um acordo comercial e garantir que os produtos beneficiados não sejam provenientes de países que não fazem parte do acordo, bem como para promover o desenvolvimento dos setores produtivos dos países signatários de um acordo, sejam eles regionais ou multilaterais

O objetivo principal das Regras de Origem Preferenciais é estabelecer as condições que deverão ser cumpridas para que uma mercadoria possa fazer jus às preferências tarifárias negociadas em um acordo comercial, além de ser comercializado ao amparo de todas as outras facilidades e obrigações que fazem parte deste. De uma maneira geral, são negociadas entre as partes signatárias de um acordo comercial, mas nesta categoria também se encontram as regras de origem relacionadas a regimes comerciais autônomos, que visam facilitar a inserção dos países em desenvolvimento na economia internacional e favorecer o desenvolvimento dos países que mais necessitam, ou seja, os países de menor desenvolvimento.

As Regras de Origem Não-Preferenciais podem ser estabelecidas, unilateralmente, por países ou blocos, para administração das medidas de defesa comercial ou de salvaguardas aplicadas, nas restrições quantitativas discriminatórias ou quotas tarifárias, para compras governamentais, questões estatísticas, entre outras.

Assim, após o entendimento do que são as regras de origem preferenciais e não- preferenciais que foram objeto do primeiro artigo, passamos agora para os demais conceitos.

Primeiro é preciso esclarecer que os Regimes de Origem dos acordos são as regras gerais e as regras específicas de origem, para depois podermos esclarecer os demais conceitos, principalmente das regras de origem preferenciais.

Nos acordos internacionais de comércio, o Regime de Origem é o corpo normativo que contém o alcance, os critérios, exigências e obrigações do acordo em matéria de origem e que, em conjunto, regulam a aplicação e o acesso aos benefícios estabelecidos por esse acordo. O Regime de Origem de um acordo deve ser considerado como um todo e sua aplicação deve se realizar de maneira integral.

As mercadorias devem cumprir com as exigências do Regime de Origem do acordo, a fim de serem consideradas originárias do país onde foi realizado o seu processo produtivo ou sua obtenção, independentemente se nesse processo foram empregados insumos importados.

Normalmente, os acordos comerciais definem dois tipos de mercadorias que podem ser consideradas como originárias: (i) os bens totalmente obtidos ou produzidos em um ou mais países-membros; (ii) os bens que utilizam algum tipo de insumo importado e que cumprem com o Regime de Origem do acordo.

As Regras Gerais estabelecem um princípio de determinação de origem aplicável a todos os produtos negociados, exceto para aquelas mercadorias para as quais os países-membros queiram estabelecer uma exigência distinta, que são as Regras Específicas.

As Regras Gerais e as Regras Específicas de origem formam o conjunto de normas, que incluem os critérios, exigências e obrigações, que regulam a aplicação e o acesso aos benefícios estabelecidos por cada acordo comercial. Nesse conjunto de normas, critérios, exigências e obrigações, onde precisamos observar:

 

1. O que são mercadorias totalmente obtidas?

São bens originários por excelência, que foram totalmente obtidos no território dos países-membros do acordo. Em geral são produtos da natureza e a sua definição se dá por meio de uma enumeração. Entre eles se encontram os produtos agropecuários, produtos de caça ou captura, minerais e metais extraídos no território dos países-membros, produtos de pesca, etc, podendo contar com simplificados processos de produção.

 

2. O que são mercadorias integralmente elaboradas ou totalmente produzidas?

São mercadorias que se elaboram única e exclusivamente a partir de produtos totalmente obtidos no território dos países-membros do acordo. Os produtos totalmente produzidos ou integralmente elaborados resultam de um ou vários processos produtivos de complexidade variável que cumprem com a condição de não utilizar qualquer insumo não-originário.

 

3. Uma mercadoria pode ser considerada como originária mesmo quando produzida com materiais não-originários? Como?

Sim, desde que essas mercadorias, elaboradas total ou parcialmente com insumos de países de fora dos países-membros do acordo, cumpram com as Regras de Origem estabelecidas. De uma maneira geral, as Regras de Origem determinam quais insumos não-originários podem ser utilizados e/ou os processos de transformação que os mesmos devem experimentar para que a mercadoria final alcance a condição de originária.

 

4. O que é transformação substancial?

A transformação substancial não é um critério propriamente dito, mas um conceito genérico que define que os insumos não-originários experimentem uma modificação significativa, de tal sorte que lhes confiram uma nova identidade. Dessa forma, o produto resultante dessa transformação poderá ser considerado originário.

As formas de definir a transformação substancial podem ser: (i) mudança de classificação tarifária (ou salto tarifário); (ii) valor de conteúdo regional; e (iii) requisitos específicos de origem.

 

5. O que é salto tarifário? Qual a sua importância para definir origem?

O critério de mudança de classificação tarifária, ou salto tarifário, pode ser utilizado em todos os níveis de abertura da nomenclatura tarifária. Esse critério determina que, para a mercadoria ser considerada originária, deve estar em uma classificação tarifária distinta e superior daquelas dos insumos não-originários.

Aqui é importante esclarecer que toda mercadoria tem uma classificação tarifária, atualmente seguindo o Sistema Harmonizado de Designação e de Codificação de Mercadorias, geralmente denominado “Sistema Harmonizado” ou simplesmente “SH”, que é uma nomenclatura internacional de classificação de mercadorias, baseado em uma estrutura de códigos e respectivas descrições.

O SH compreende 5.019 grupos ou categorias distintas de mercadorias, em 97 Capítulos, identificadas por um sistema de códigos com 6 dígitos, organizados em uma estrutura lógica e apoiados por regras bem definidas para obter uma classificação uniforme.

A composição dos códigos do SH, formado por 6 dígitos, adotada por todos os países, permite que sejam atendidas as especificidades dos produtos, tais como origem, matéria constitutiva e aplicação, em um ordenamento numérico lógico, crescente e de acordo com o nível de sofisticação das mercadorias. Os dois primeiros dígitos indicam o Capítulo. Dentro do Capítulo, a Posição é identificada pelos quatro primeiros dígitos e a Subposição é composta pelo quinto e sexto dígitos.

Como as mercadorias estão ordenadas de forma progressiva, de acordo com o seu grau de elaboração, principiando pelos Animais Vivos e terminando com as Obras de Arte, passando por matérias-primas e produtos semi-elaborados, quanto maior a elaboração da mercadoria, mais elevado é o número do Capítulo/Posição/Subposição em que ela será classificada.

Assim, para considerar que houve agregação de valor em uma mercadoria, a regra de origem pode ser de salto de Capítulo, salto de Posição ou salto de Subposição.

 

6. Critério de valor de conteúdo regional? Qual é a regra para mensurar esse critério de valor?

O critério de valor de conteúdo regional define a origem da mercadoria com base na participação dos insumos dos países-membros no valor agregado da mercadoria final. Este critério procura estabelecer a participação dos processos realizados no território dos países-membros sobre o valor final da mercadoria.

Alguns acordos chamam esse critério de valor de conteúdo ou de valor de conteúdo regional (VCR) ou índice de conteúdo regional (ICR). São o mesmo conceito, que é a participação das mercadorias originárias dos países-membros do acordo, razão pela qual alguns acordos empregam o termo “regional” porque no valor agregado podem ser considerados os insumos de qualquer um dos países-membros do acordo, em processo de acumulação de origem.

Existem múltiplas fórmulas de cálculo para determinar o conteúdo regional, que são definidas no acordo, diretas ou indiretas, com a finalidade de determinar o valor que representam os componentes originários e não-originários no valor da mercadoria.

Todas as fórmulas propostas identificam os insumos como o principal componente para a determinação de origem da mercadoria e seu peso relativo no valor desta. A maioria dos métodos de cálculo também consideram, em maior ou menor medida, o restante dos custos empregados na produção da mercadoria. As fórmulas podem ser decorrentes da comparação do valor CIF dos insumos importados com o valor FOB da mercadoria exportada ou de um valor agregado dentro da fábrica (ex-fábrica), entre outros.

 

7. O que são os Requisitos Específicos de Origem?

Para algumas mercadorias mais sensíveis, os países-membros de um acordo determinam o cumprimento de Requisitos Específicos de Origem (REOs), que são exceções à regra geral e sempre prevalecem sobre estas.

As regras específicas são exigências determinadas para cada mercadoria, as quais podem ser similares a de outros produtos negociados ou não. Normalmente, os Requisitos Específicos de Origem são dispostos em um anexo ao acordo.

Os REOs podem definir algumas linhas tarifárias sujeitas ao cumprimento de processos produtivos básicos ou exigência de que uma determinada matéria-prima seja originária dos países-membros. Mas há casos também de que o REO possa ser uma combinação cumulativa de regras gerais, de cumprir com mudança de posição tarifária e também o percentual de valor de conteúdo regional.

 

8. Quais operações não conferem origem?

Algumas operações, apesar de implicarem em salto tarifário da mercadoria ou cumprir o valor de conteúdo regional, são chamadas de “operações mínimas” e não são consideradas suficientemente importantes para conferir origem às mercadorias. Como por exemplo: envases e embalagens, montagens ou ensamblagens, fracionamento em lotes ou volumes, jogos e sortidos, simples diluição em água, etc. O Regime de Origem dos acordos normalmente identifica tais operações mínimas que não conferem origem.

Os Regimes de Origem costumam incluir cláusulas específicas para tratar de envases e material de embalagem e, geralmente, esse tipo de insumo não é levado em conta na determinação de origem da mercadoria.

Os jogos e sortidos são bens que podem ser comercializados conjuntamente, constituindo um conjunto de mercadorias de uma mesma gama ou que podem ser complementares em seu uso, como, por exemplo: kit de ferramentas, conjuntos de cama e mesa ou estojos de lápis, lapiseiras e canetas. Podem ser classificados em posições tarifárias distintas, mas a simples atividade de confecção de um jogo ou sortido por si só não confere origem.

De uma maneira geral, os acordos estabelecem que todos os bens que compõem um jogo devem ser originários, ou seja, cada um individualmente deve cumprir com a sua Regra de Origem específica, mas alguns permitem flexibilidades, que pode ser um percentual de valor não-originário. C

Além dos conceitos e critérios aqui abordados, existem outros que trazem maiores complexidade devido aos novos formatos de produção e comercialização de bens e serviços no comércio global.

São os requisitos produtivos, certos procedimentos de comercialização, de trânsito e de transbordo, condições adicionais na determinação da origem da mercadoria, “de minimis”, acumulação de origem, materiais fungíveis, materiais indiretos e materiais intermediários.

Assim, podemos observar que o Regime de Origem é dinâmico ao longo do tempo, visto que vários fatores externos influenciam em mudanças constantes dos critérios e conceitos, o que o torna um instrumento de política comercial essencial hoje para o futuro.