Vanessa Vilela Berbel

Colunista

Vanessa Vilela Berbel

Professora adjunta do Instituto Federal do Paraná. Pesquisadora dos temas direito e desenvolvimento econômico.

“O que esperar quando você está esperando” ou a regulamentação do Programa de Combate ao Assédio Sexual

Vanessa Vilela Berbel

Nas minhas sucessivas tentativas de ser mãe biológica recebi de minha irmã um livro muito agradável, com o nome “O que esperar quando você está esperando”, escrito por Heidi Murkoff, Arlene Eisenberg e Sandee Hathaway, cujo objetivo é “fornecer respostas tranquilizadoras para os futuros pais”. A espera é sempre angustiante para pessoas ansiosas como eu e, certamente, tranquilidade não foi exatamente o que tive ao lê-lo, ainda mais após cinco abortos sucessivos.

Bem, não estou aqui para falar com você sobre o tema da gestação de bebês, ainda que seja essencial no Brasil, mas sim de outra geração, muito mais demorada e que demanda articulação do interesse de mais de duas pessoas: a regulamentação de uma lei.  

Regulamentar uma lei por um único órgão já não é tarefa fácil; imagine, então, quando precisa ser feita por múltiplos responsáveis. Foi esse o desafio lançado pela Lei 14.540/2023, que instituiu o Programa de Prevenção e Enfrentamento ao Assédio Sexual e demais Crimes contra a Dignidade Sexual e à Violência Sexual no âmbito da administração pública, direta e indireta, federal, estadual, distrital e municipal.

O Programa determina, em síntese, que os órgãos públicos realizem ações voltadas (a) à prevenção e enfrentamento do assédio sexual e de todas as formas de violência sexual, (b) à capacitação dos agentes públicos para o desenvolvimento e a implementação de ações destinadas à discussão, à prevenção, à orientação e à solução do problema e (c) à implementação e disseminação de campanhas educativas sobre as condutas e os comportamentos que caracterizam o assédio sexual e demais crimes contra a dignidade sexual.

E como o Brasil precisa deste Programa implementado com esmero! Apesar de parecer irreal, em 29 de maio deste ano, pesquisa elaborada pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) apurou que 84,5% dos brasileiros têm pelo menos um tipo de preconceito contra as mulheres. Destaco dois deles:

  • 31% dos brasileiros acham que homens têm mais direito a vagas de trabalho ou são melhores em cargos executivos; e
  • 39% dos entrevistados acreditam que mulheres não desempenham papel na atividade política tão bem quanto os homens.

Os preconceitos não ficam na seara íntima do preconceituoso, mas transformam-se em obstáculos sociais para as mulheres e vêm, a cada dia, reduzindo as oportunidades de gozo de seus direitos fundamentais. Daí porque, como consequência, em 59 países onde mais mulheres possuem formação do que os homens, a diferença média de renda entre gêneros permanece em 39% a favor dos homens[1].

Estamos caminhando para o quinto “mesversário” da Lei 14.540/2023. Se fosse um bebê, precisaríamos prestar bastante atenção, pois, nesta fase, já estaria se preparando para sair engatinhando por aí. Será? “Só que não”, ao menos em relação às concessionárias, permissionárias e delegatárias de serviços públicos.

No âmbito da administração pública, o Programa possui diretrizes desde antes da promulgação, como podemos ver do “Guia Lilás: orientações para prevenção e tratamento ao assédio moral e sexual e à denúncia no Governo Federal” (Guia Lilás), elaborado pela Controladoria-Geral da União (CGU) e aprovado pela Portaria Normativa SE/CGU nº 58/2023. Neste documento, pode-se encontrar conceitos e exemplos de atos, gestos, atitudes e falas que configurem assédio moral ou sexual ou, ainda, de discriminação. Também há orientações sobre o uso apropriado dos canais de denúncia.

Uma importante orientação oferecida pelo Guia Lilás é a forma adequada de abordagem da vítima no ato da denúncia. Sei, por experiência de dois anos como coordenadora do Ligue 180, o quanto é desafiador proporcional escuta ativa e respeitosa, demonstrando interesse, compreensão e valorização do que o denunciante está relatando sem externar uma postura julgadora e permeada por perguntas excessivas.

Contudo, mesmo havendo guias, orientações e formulários, “na teoria a prática é outra”. Nem sempre os atendimentos de Ouvidoria estão realmente preparados e, digo com firmeza, não há formula mágica que sirva a todos os contextos; cada situação de violência é única e possui perguntas-chave para o adequado encaminhamento da demanda. É necessário muita, mas muita pesquisa técnica para se chegar a um nível ótimo.

Portanto, só criar um canal de ouvidora, sem ter preparação prévia dos envolvidos e um estudo adequado para cada um dos meios disponíveis para a realização de denúncia (telefone, mensageria, presencial) e para cada uma das violências sofridas, em nada adianta; ao contrário, há riscos de se desencorajar as vítimas, que acabam, em alguns casos, ainda mais expostas às medidas de retaliação do agressor.

Há um Grupo de Trabalho de enfrentamento ao assédio na Administração Pública, o qual está a realizar ciclo de painéis para debater o tema, contando com representantes da Advocacia-Geral da União, da Controladoria-Geral da União, dos ministérios dos Direitos Humanos e da Cidadania, da Igualdade Racial, da Justiça e Segurança Pública, das Mulheres, da Saúde, do Trabalho e Emprego, do Ministério da Educação e da Escola Nacional de Administração Pública (ENAP). O ciclo de palestras do Grupo ocorrerá até setembro; os debates se propõem a oferecer um plano, a partir de metodologia desenvolvida coletivamente. Mais uma diretriz, mais uma orientação…tomara que venha seguida dos recursos públicos necessários à implementação.

Ainda que dentro da administração pública federal haja um movimento para a efetivação da lei, não vemos a mesma uniformidade em relação a outros entes da administração direta e indireta; notadamente, não se localizou qualquer protótipo, minuta ou pauta a respeito da regulamentação dos serviços públicos realizados pelas concessionárias e permissionárias, principalmente para que tudo isso se torne obrigação contratual, e não mera benevolência.

Enquanto isso, continuamos com as preocupações comuns dos traumas causados pelos insucessos anteriores, mas com a consciência de quem sabe que nada na vida se faz com completa isenção de riscos.


[1] Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento -PNUD. RELATÓRIO DO DESENVOLVIMENTO HUMANO 2021/2022. Disponível em: RELATÓRIO DE DESENVOLVIMENTO HUMANO 2021-22 | United Nations Development Programme (undp.org). Acesso em 28.06.2023.

Repositório

“O que esperar quando você está esperando” ou a regulamentação do Programa de Combate ao Assédio Sexual. WebAdvocacy. Brasília, DF. Coluna de Vanessa Vilela Berbel. 03 de maio de 2023. 

Um feliz dia das mães em 2023? Devolução do IR retroativo sobre valores das pensões alimentícias recebidas e Recomendação CNJ nº 128/2022: motivos para comemorar. WebAdvocacy. Brasília, DF. Coluna de Vanessa Vilela Berbel. 03 de maio de 2023.

Sociedade do cuidado, ADI 7222 (piso salarial dos profissionais da enfermagem) e desigualdade de gênero. WebAdvocacy. Brasília, DF. Coluna de Vanessa Vilela Berbel. 03 de dezembro de 2022.

Lei que Institui o Programa Emprega + Mulheres. WebAdvocacy. Brasília, DF. Coluna de Vanessa Vilela Berbel. 12 de outubro de 2022.

Licença Menstrual Remunerada: uma medida urgente de saúde das trabalhadoras brasileiras. WebAdvocacy. Brasília, DF. Coluna de Vanessa Vilela Berbel. Agosto de 2022.

ADI 5422: por um dia das mães mais feliz. WebAdvocacy. Basília, DF. Coluna de Vanessa Vilela Berbel. 12 de maio de 2022.

Impedimento à posse em concurso público de condenados por violência contra mulher e outros grupos vulneráveis. WebAdvocacy. Brasília, DF. Coluna de Vanessa Vilela Berbel. Fevereiro de 2022.

Adicional de obstetrícia nos planos de saúde: equilíbrio econômico do contrato ou tratamento não igualitário do sexo feminino? WebAdvocacy. Brasília, DF. Coluna de Vanessa Vilela Berbel. 16 de agosto de 2021.

Violência de gênero e regulação das mídias digitais. WebAdvocacy. Brasília, DF. Coluna de Vanessa Vilela Berbel. 20 de junho de 2021.

Há razões econômicas para se obrigar os licitantes à contratação de mulheres vítimas de violência doméstica e familiar? WebAdvocacy. Brasília, DF. Coluna de Vanessa Vilela Berbel. 20 de abril de 2021.