Tatiane Negreiros

Colunista

Tatiane Gonçalves Oliveira Negreiros Aguiar

Advogada, pós-graduanda em Direito Tributário, atualmente desempenhando a função assessora técnica no Gabinete da Superintendência-Geral do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE).

Aexpressividade dos Mercados Digitais nos tempos atuais é notória. As plataformas digitais assumiram um papel importante no cotidiano dos indivíduos e empresas, seja na hora de se locomover, se comunicar, ter acesso a entretenimento, fazer compras, buscar profissionais e até mesmo se alimentar.

O protagonismo dessas plataformas nos hábitos da sociedade e as possíveis consequências que podem advir de alterações significativas desse mercado fizeram com que os Mercados Digitais estejam sob os holofotes do Direito Concorrencial e da Regulação, conforme corroboram os diversos eventos[1], grupos de trabalho e publicações[2] relacionados ao assunto.

Dentre as discussões atuais a respeito desse tema destacam-se: (i) a suficiência dos instrumentos tradicionais de análise antitruste para o exame de operações em mercados digitais; (ii) a adequação dos critérios de notificação obrigatória para as operações nesses mercados; e (iii) os riscos associados a práticas de aquisição reiterada e sucessiva de entrantes que poderiam, em tese, vir a concorrer no mercado, o que poderia implicar na imposição de barreiras à entrada de novos players[3].

Inicialmente, é relevante conceituar o que são as plataformas digitais. Embora não haja uma definição única, elas são genericamente referenciadas na literatura como estratégias de múltiplos lados que facilitam interações entre dois ou mais grupos de usuários que consomem serviços a partir da internet[4].

O universo desse mercado possui diversas peculiaridades que o difere dos mercados tradicionais e, consequentemente, reverberam diretamente nos critérios usuais da análise concorrencial.

Antes de adentrar na análise dos desafios do antitruste, vale mencionar algumas das principais especificidades desse mercado, como: (i) preço zero; (ii) plataformas multilaterais; (iii) efeitos de rede; (iv) uso de dados como insumo essencial; e (v) dinamicidade e elevado potencial de inovação.

Esses atributos, além de outros desafios colocados por esse mercado, vêm sendo tratados com cautela pelas autoridades antitruste ao redor do mundo, dado que a intervenção excessiva pode afetar a inovação, que por sua vez é de extrema importância para a competição. Nesse diapasão, é fundamental que o Direito da Concorrência, além de não comprometer ou dificultar a inovação, possa sobretudo funcionar como importante instrumento para incentivá-la e fomentá-la[5].

Como visto, os mercados digitais possuem uma confluência de diversas características que os diferencia dos mercados tradicionais, o que ocasiona desafios à análise antitruste, a exemplo da delimitação do mercado relevante e análise do poder de mercado dos players.

Segundo o Guia de Análise de Atos de Concentração Horizontal do CADE, a delimitação do mercado relevante (MR) é o processo de identificação do conjunto de agentes econômicos (consumidores e produtores) que efetivamente reagem e limitam as decisões referentes a estratégias de preços, quantidades, qualidade – entre outras) – da empresa resultante da operação. Entretanto, o documento aponta ser esta uma ferramenta útil, mas não um fim em si mesmo. Isto porque a identificação dos possíveis efeitos competitivos envolve a avaliação de condicionantes que, por vezes, estão fora do mercado relevante pré-definido. Assim, a delimitação do MR não vincula o CADE[6].

De acordo com a disciplina da Lei 12.529/2011,  presume-se posição dominante sempre que uma empresa ou grupo de empresas for capaz de alterar unilateral ou coordenadamente as condições de mercado ou quando controlar 20% (vinte por cento) ou mais do mercado relevante, podendo este percentual ser alterado pelo CADE para setores específicos da economia[7].

working paper alemão sobre poder de mercado de plataformas afirma que os conceitos gerais de definição de mercado relevante, tais como substitutibilidade de oferta e demanda, são teoricamente aplicáveis a mercados digitais. Não obstante, autoridades encontrariam importantes desafios práticos na aplicação de testes de substitutibilidade[8]. Essa visão é compartilhada de modo geral, segundo o Documento de Trabalho nº 005/2020, intitulado “Concorrência em mercados digitais: uma revisão dos relatórios especializados”, do Departamento de Estudos Econômicos do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (DEE/CADE).

A definição de mercado relevante também foi objeto de relatório da OCDE, o qual alerta sobre a dificuldade da definição do mercado e da necessidade de fazê-lo no âmbito de cada caso concreto, sobretudo tendo em mente que a tecnologia, por si só, não é capaz de definir contornos do MR. Todavia, as entidades regulatórias e de defesa da concorrência devem, em razão da crescente migração dos serviços tradicionais para plataformas digitais, avaliar as restrições competitivas potencialmente impostas por serviços do gênero, considerando que a regulação deve levar em conta o estado concorrencial atual dos mercados[9].

Outro desafio que merece ser mencionado são os critérios de notificação de operações envolvendo esse mercado. Nesse sentido, a Lei 12.529/2011, em seu art. 88,, disciplina que são de notificação obrigatória as operações nas quais um dos grupos econômicos envolvidos tenha registrado faturamento bruto anual ou volume de negócios no Brasil equivalente ou superior a R$ 750 milhões e a outra parte, no mínimo, R$ 75 milhões[10].

Outro critério, cumulativo ao de faturamento, é o enquadramento da operação em algumas hipóteses de negócio previstas no art. 90 da Lei de Defesa da Concorrência, que considera a realização de um ato de concentração quando: (i) duas ou mais empresas anteriormente independentes se fundem; (ii) uma ou mais empresas adquirem o controle ou partes de uma ou outras empresas, direta ou indiretamente, por compra ou permuta de ações, quotas, títulos ou valores mobiliários conversíveis em ações, ou ativos, tangíveis ou intangíveis, por via contratual ou por qualquer outro meio ou forma; (iii) uma ou mais empresas incorporam outra ou outras empresas; ou (iv) duas ou mais empresas celebram contrato associativo, consórcio ou joint venture.

Ocorre que muitas empresas-alvo em operações dos mercados digitais possuem baixo faturamento, bem aquém do estabelecido na legislação, ou operam a preço zero, uma vez que o usuário final dessa plataformaa –  buscas online e redes sociais, por exemplo – não as remunera em dinheiro. No entanto, nessas relações de preço zero, embora não haja contrapartida monetária, existem transações de bens imateriais de grande relevância, como os dados pessoais e a atenção.

Segundo estudo da Federal Trade Commission (FTC), entre 2010 e 2019 a Amazon, Apple, Facebook, Google e Microsoft realizaram mais de 800 operações que não foram notificadas por serem consideradas pequenas e possuidoras de cláusulas de não concorrência, não se enquadrando nas transações de valor maior ou igual a US$ 92 milhões, montante mínimo exigido pela autoridade estadunidense para verificação de operação[11].

Para além dos pontos abordados até aqui, existem outros inúmeros problemas concorrenciais, tais como os efeitos anticompetitivos, que circundam as plataformas digitais, como self-preferencing e killer acquisitions.

Dessa maneira, diante das especificidades dos mercados digitais, é evidente que a atual legislação e análise concorrencial tradicional se mostram limitadas. Corrobora com esse cenário, o fato de que a mudança na forma de tratamento desse mercado já é uma realidade dentro do processo legislativo brasileiro.

Nesse sentido, ressalta-se que tramita atualmente na Câmara dos Deputados o PL 2768/2022[12], de autoria do deputado João Maia (PL/RN), que dispõe sobre a organização, o funcionamento e a operação das plataformas digitais que oferecem serviços ao público brasileiro. A iniciativa propicia condições para a aprovação de uma norma que visa regular os mercados digitais.

Diante disto, a provocação que faço nesse artigo é se, de fato, a edição de uma Lei –  que regule esse mercado e altere a Lei 12.529/2011 no que tange à análise dos atos de concentração e casos de condutas envolvendo plataformas digitais – seria a melhor solução, ou traria ainda mais desafios e problemas. Ainda, se seria salutar a edição, pelo CADE, de um Guia de Análise de Atos de Concentração do mercado de plataformas digitais.

A resposta para essas perguntas não é nada simples e óbvia. Portanto, enquanto as autoridades, a comunidade antitruste e os acadêmicos não chegam a um consenso sobre como endereçar esses desafios, a solução imediata e mais seguraseria o CADE se valer da faculdade de fazer uma análise ex post, que lhe é garantida pela Lei de Defesa da Concorrência, no sentido de requerer a submissão das operações envolvendo mercados digitais  no prazo de um ano, a contar da data da sua consumação.[13].

Outra estratégia a ser possivelmente adotada pela autoridade antitruste para superar essas dificuldades, por ora, em vez de focar na definição de mercados relevantes propriamente ditos, seria a de direcionar sua análise para as evidências de poder de mercado (específica em relação ao caso, levando em consideração a economia comportamental), teorias de dano à concorrência ou identificação de estratégias anticompetitivas.


[1] Cabe citar os eventos realizados pelo Instituto Brasileiro de Estudos de Concorrência, Consumo e Comércio Internacional (IBRAC), pela International Competition Network (ICN), pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e pelo próprio Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE).

[2] A exemplo do Documento de Trabalho nº 005/2020 intitulado “Concorrência em mercados digitais: uma revisão dos relatórios especializados” e da edição Cadernos do Cade, de agosto de 2021, “Mercados de Plataformas Digitais”, ambos do Departamento de Estudos Econômicos do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (DEE/CADE).

[3] Inovações disruptivas e os desafios impostos à regulação e aos reguladores/organização Ana Clara Klein Pegorim…[et al.]. 1. Ed. São Paulo: Editora Singular: IBRAC, 2022. Vários autores. p. 73.

[4] Fernandes, Victor Oliveira. Direito da Concorrência das Plataformas Digitais: Entre abuso de poder econômico e inovação. São Paulo: Thomson Reuters, 202, p. 106

[5] Frazão, Ana. Direito da Concorrência: pressupostos e perspectivas. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 58.

[6] Guia de análise de atos de concentração horizontal. Brasília, 2016, p. 13. https://cdn.cade.gov.br/Portal/centrais-de-conteudo/publicacoes/guias-do-cade/guia-para-analise-de-atos-de-concentracao-horizontal.pdf.

[7] Lei 12.529/2011, de 30 de novembro de 2011. Art. 36, §2º.

[8] Documento de Trabalho nº 005/2020 intitulado “Concorrência em mercados digitais: uma revisão dos relatórios especializados”, p. 19. https://cdn.cade.gov.br/Portal/centrais-de-conteudo/publicacoes/estudos-economicos/documentos-de-trabalho/2020/documento-de-trabalho-n05-2020-concorrencia-em-mercados-digitais-uma-revisao-dos-relatorios-especializados.pdf.

[9] Frazão, Ana. Direito da Concorrência: pressupostos e perspectivas. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 61.

[10] Valores adequados pela Portaria Interministerial nº 994, de 30 de maio de 2012.

[11] COELHO, Lara Iglesio Soares Antitruste e os marketplaces: os possíveis problemas concorrenciais das plataformas de varejo no Brasil / Lara Iglesio Soares Coelho. – 2022, p. 30.

[12] PL 2768/2022: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/prop_mostrarintegra?codteor=2214237&filename=PL%202768/2022.

[13] Lei 12.529/2011. Art. 88, § 7º.


[*] Este artigo foi desenvolvido como trabalho de conclusão de Curso de Defesa da Concorrência oferecido pela WebAdvocacy e ministrado pelo Doutor em Economia e Ex-Conselheiro do CADE, Elvino de Carvalho Mendonça.