Quem nunca se deparou com a seguinte situação: empresa inovadora/startup lança novo produto conferindo nova roupagem a algum serviço tradicional, atraindo a atenção do público e, ato contínuo, especialistas, legisladores e empresas do setor comentam sobre a necessidade de regulamentar o novo serviço?
Lembremos do caso Uber e a batalha jurídica para (i) regulamentar o serviço; e (ii) decidir quem regulamenta o serviço, até que, enfim, a Lei 13.640/2018 (que alterou a Lei de Mobilidade Urbana – 12.587/2012) regulamentou transporte remunerado privado individual de passageiros e o STF pacificou o entendimento acerca da obrigatoriedade de sua adoção pelos municípios Brasileiros na decisão da ADPF 449.
Passando pela polêmica fugaz dos patinetes elétricos, que surgiram e sumiram na mesma velocidade – não sem antes despertar os defensores da regulamentação pública, a bola da vez são os serviços de fretamento compartilhado, representado de maneira mais notória pela empresa Buser, também conhecida como “Uber dos ônibus”.
Em resumo, o fretamento colaborativo nada mais é do que a oferta de assentos em ônibus de fretamento por meio de um aplicativo da empresa em que os custos são divididos pelos passageiros.
Importante, no caso, diferenciar as linhas regulares do transporte de fretamento. O transporte regular, nos termos do Decreto 2.521/1998, é aquele delegado para transporte rodoviário coletivo interestadual e internacional de passageiros entre dois pontos terminais, com tarifas e esquema operacional aprovados pela Agencia Nacional de Transportes Terrestres – ANTT. Ou seja, é o ônibus que o usuário pega nas rodoviárias e possui uma oferta contínua e regular de horários. O fretamento, por sua vez, é o serviço prestado a um grupo de pessoas, em circuito fechado (ou seja, ida e volta), em que o transportador precisa enviar uma lista prévia à ANTT para que seja autorizado. Cabe ressaltar que os conceitos acima também se aplicam, analogamente, ao transporte intermunicipal de passageiros, de competência dos Estados.
As empresas de fretamento colaborativo atuam por meio de parceiros – empresas de ônibus de fretamento, autorizadas pelas agências nacional ou estaduais, disponibilizando veículos dessas empresas para determinados trajetos, mas se utilizando da tecnologia de marketplace para formar os grupos de fretamento.
As empresas atuantes no serviço regular alegam que o serviço de fretamento colaborativo seria um serviço público, assemelhando-se ao serviço regular e, portanto, sujeito às regras do serviço regular. Sob esse argumento, diversas agências reguladoras estaduais e a própria ANTT têm autuado ônibus de fretamento colaborativo, impedindo-os de seguir viagem.
O debate traz consigo um elemento bastante comum nas discussões envolvendo tecnologias disruptivas: a necessidade de alguns agentes, públicos e/ou privados, de tentar encaixar a inovação nas caixinhas da regulamentação disponível, normas elaboradas, necessariamente, quando a tal tecnologia sequer existia.
Voltando ao caso Uber, os defensores da regulamentação à época, em geral também defensores dos taxis, alegavam ser o Uber e seus assemelhados serviços não regulados e que, portanto, ofereciam riscos aos usuários.
Ora, primeiramente, defender a regulamentação de um serviço como elemento fundamental para sua legalidade é uma completa inversão do princípio constitucional da livre iniciativa, assentado no artigo 170 da Constituição Federal e que, em seu parágrafo único, dispõe que “é assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei”. Em segundo lugar, a ausência de regulamentação jamais pode ser utilizada como argumento de segurança, pois, se assim o fosse, todos os serviços não regulados estariam colocando em risco a população. A regulação é exceção, não regra.
O que deve mover o intento regulamentador do Estado é a existência de falhas de mercado, falhas essas suficientemente relevantes que justifiquem uma intervenção do Poder Público. No caso dos taxis, o que um dia justificou a intervenção do Estado para regular a entrada no serviço e as condições de sua oferta são as assimetrias informacionais entre prestador e usuário, relativas ao preço cobrado, qualidade e segurança do serviço (manutenção do veículo, habilitação do motorista,etc).
Contudo, a inovação tecnológica promovida pelas tecnologias de plataformas não apenas reduziu as assimetrias informacionais como também aprimorou o produto de forma que nem a regulação seria capaz. Com um simples toque no aplicativo de celular o usuário consegue obter informações do preço exato (e não apenas o valor da bandeira), da nota do motorista e de seu serviço, aspectos que garantem ao usuário segurança e qualidade em nível superior àquele garantido pela regulação estatal. Considerando esses elementos, em vez de defender a regulação do Uber, não seria o caso de se protestar pela desregulamentação dos taxis? infelizmente, a discussão sobre desregulamentar o serviço de taxis passou longe da agenda pública.
No caso do fretamento colaborativo, a analogia é válida. Não se trata de defender a desregulamentação do transporte rodoviário – embora a tecnologia atual permita avançar sobre diversos aspectos da regulação; mas de se questionar se há necessidade real de regulamentar o novo serviço. Lembrando que as empresas parceiras, proprietárias dos veículos, já são devidamente reguladas. O que se questiona é se a mera intermediação da oferta de assentos em veículos fretados deve ser objeto de regulação e, especialmente, proibição por parte do Poder Público.
A tecnologia de plataformas hoje permite que usuários e consumidores sejam agrupados remotamente, o que de outra maneira não aconteceria, e se conectem a ofertantes do serviço de maneira simples, otimizando a formação de grupos aptos a fretarem um veículo para o mesmo destino. Trata-se de uma nova forma de fazer algo antigo, só que muito mais eficiente.
Outros serviços regulados hoje também se valem desses marketplaces para otimizar a oferta de serviços aos clientes, com significativo impacto na concorrência, como as plataformas de investimentos e empréstimos pessoais, que estão revolucionando o mercado financeiro no Brasil. Por meio dessas plataformas, ofertantes antes sem acesso a uma rede de atendimento capilarizada alcançam milhões de consumidores e esses, por sua vez, deixam de depender apenas dos grandes bancos para ter acesso e comparar serviços de dezenas de ofertantes distintos em um só aplicativo.
O surgimento de novos produtos e serviços ou novas formas de se ofertar produtos e serviços tradicionais deve provocar discussões para além da mera cobrança por regulamentar o novo. Mais do que isso, é imperativo a reflexão acerca das razões pelas quais aquilo foi regulado no passado e se as condições ainda subsistem ou não. Nesse sentido, um grande avanço pode ser notado na Instrução Normativa SEAE/ME nº 60/2022, que regulamentou o papel da SEAE nos processos de Análise de Impacto Regulatório – AIR das agências reguladoras federais e entrou em vigor no último 1º de setembro. Em seu artigo 8º a referida IN dispõe que, nos processos de AIR as agências reguladoras devem considerar alternativas regulatórias em número não inferior a 3 (três), devendo estar disponíveis, dentre as alternativas, necessariamente (i) a não intervenção regulatória adicional, ou seja, manter como está; e (ii) a desregulamentação do tema, revogando o normativo existente.
Trata-se de um primeiro e enorme passo no sentido de se provocar a discussão e a reflexão sobre desregulamentação, colocando-a como opção mandatória nos processos decisórios das agências reguladoras federais e um contraponto ao fetiche regulatório que usualmente domina o debate no país. Mais uma vez, não se trata de uma crítica à regulação em si, mas à forma como se faz regulação no Brasil, que, muitas vezes, coloca interesses privados e de determinados grupos acima do interesse público, como já defendia George Stigler lá na década de 1970[1]. Que um dia possamos, diante de uma inovação, nos questionar: “o que podemos desregulamentar”?
[1] The Theory of Economic Regulation. George J. Stigler. Source: The Bell Journal of Economics and Management Science, Vol. 2, No. 1 (Spring, 1971), pp. 3-21
MARCELO NUNES DE OLIVEIRA. É administrador de empresas pela Universidade de Brasília – UNB, especialista em Defesa da Concorrência pela Fundação Getúlio Vargas (FGV) e mestre em Economia pelo Instituto de Direito Público de Brasília (IDP).
É servidor efetivo da carreira de Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental (EPPGG) no Ministério da Economia. Atuou no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), entre 2009 e 2019, exercendo, a partir de 2012, a função de coordenador-geral de Antitruste.
Entre março de 2019 a março de 2021, foi cedido à Liderança do Partido Novo na Câmara dos Deputados, onde, depois de aprovado em seleção, exerceu a função de coordenador técnico, responsável por coordenar a equipe multidisciplinar que analisa e formula proposições legislativas com o objetivo de subsidiar a bancada do partido Novo em seus posicionamentos na Câmara Federal, além de ser o responsável, na equipe, pelo assessoramento à bancada nos temas relacionados à defesa da concorrência e regulação econômica.
Desde abril de 2021 está cedido ao Estado de Goiás onde exerce a Função de Conselheiro-Presidente da Agência Goiana de Regulação – AGR
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