César Mattos*
Rodolfo Souza**
Rosendo de Melo Neto***
Em 02 de outubro de 2020, Índia e África do Sul entraram na Organização Mundial do Comércio (OMC) defendendo a licença compulsória de direitos de propriedade intelectual para produtos relacionados ao covid-19[1]. Trata-se de uma licença compulsória especial, com maiores facilidades a ser concedida em escala global, porque o direito internacional público, nos termos do Acordo TRIPs (Trade-Related Aspects of Intellectual Property Rights), já permite aos seus membros decretar unilateralmente tais licenças nas condições que especifica[2].
Em razão dessa permissão facultada pelo Acordo TRIPs, diversos países passaram a contemplá-la em suas legislações[3], contudo não há registro de países que tenham decretado a facultada licença compulsória dos referidos produtos.
Mas já se fala na comunidade internacional, consonante o clamor de Índia e África do Sul, em uma licença para além da permitida atualmente pelo Acordo TRIPs, alterando e revisando os dispositivos concernentes desse instrumento internacional.
No Brasil, o Projeto de Lei do Senado 12/2021[4], aprovado em abril de 2021, e mais de uma dezena de projetos em tramitação na Câmara dos Deputados, sugerem alterações na atual sistemática da licença compulsória em produtos úteis no combate à covid-19, como os imunizantes. Nosso objetivo neste artigo é indagar se licenciar compulsoriamente a patente das vacinas para covid-19 faz sentido no Brasil?
Inicialmente, por que há patentes? O mercado de inovações tem uma falha no mecanismo de mercado: gasta-se muito para inovar e, quando se inova, é copiado, comprometendo o retorno esperado com a atividade de inovação. Como fazer P&D é custoso e arriscado, a falta de um sistema de proteção pela patente gera poucos incentivos à inovação.
A patente, portanto, constitui um instrumento para corrigir esta falha do mecanismo de mercado, concedendo-se uma exclusividade temporária (20 anos pelo art. 40 da Lei nº 9.279/96) ao inventor, evitando que os “copiadores” expropriem o investimento em P&D, destruindo o retorno da inovação.
O custo da patente é que, durante este período de exclusividade, o inventor atua como um monopólio, com maior liberdade na definição de preços. Assim, a patente envolve uma troca intertemporal: incentiva-se a atividade inovadora em troca da não permissão da concorrência sobre o objeto da inovação patenteada enquanto persistir a exclusividade. Após este período, a patente cai em domínio público e todos poderão copiar e concorrer com o inventor, reduzindo preços.
No entanto, mesmo durante a vigência da patente, é possível que surjam substitutos que, ainda que não infrinjam os limites da proteção da patente, se baseiam em informações trazidas por ela. Por exemplo, a patente do Viagra venceu em 2010 no Brasil, mas desde 2003 já havia a concorrência do Cialis.
Ademais, quando a exclusividade acaba junto com o término da patente, presume-se que mais facilmente produtos substitutos próximos surjam, erodindo a posição monopolista do titular. No exemplo do Viagra, as empresas EMS e Sandoz lançaram genéricos do Viagra logo após a expiração da patente. Em síntese, a patente pode conferir, no máximo, um monopólio por um prazo, mas que vai sendo erodida ao longo do tempo, mesmo antes de se expirar a proteção. Este preço de curto prazo de monopólio é o custo a se pagar por garantir a apropriação dos frutos da inovação e, portanto, os incentivos para que esta inovação ocorra em primeiro lugar.
É sabido que o sistema de patentes é particularmente relevante para gerar incentivos à inovação na área farmacêutica. Boa parte da discussão que gerou o citado Acordo TRIPs, celebrado no âmbito da Organização Mundial do Comércio – OMC, e a edição da Lei nº 9.729, de 1996, no Brasil, diziam respeito a permitir patentes neste setor.
A principal razão disto é o elevado dispêndio em P&D para novos produtos farmacêuticos. O World Economic Forum (2020)[5] mostra que o tempo médio atual de desenvolvimento de uma vacina é entre 8 e 15 anos, com um custo médio de US$ 500 milhões, em que se parte de cerca de 100 vacinas potenciais para se chegar a apenas uma efetiva.
O esforço do desenvolvimento das vacinas para a Covid-19 representa um evento inédito na história dos imunizantes como destaca o Council of Foreign Relations[6]dado que se reduziu o período de desenvolvimento para menos de um ano. Naturalmente, “encurtar” assim o prazo de desenvolvimento de uma vacina requereu custos (bem) maiores.
Um dos principais requisitos para se avaliar se um licenciamento compulsório de patentes pode ampliar a oferta de vacinas é se há laboratórios nacionais com capacidade técnica e produtiva para fabricá-las em curto espaço de tempo no país. Aqui, somente dois laboratórios produzem vacinas atualmente, Fiocruz e Butantan, estando ambos em sua capacidade máxima, produzindo, respectivamente, as vacinas Covishield, da Astrazeneca e Coronavac, da Sinovac, com acordos para produção, de forma cooperativa, sem pagamentos de royalties, e ainda com transferência de tecnologia. Note-se que acordos como estes, com a voluntária cooperação dos laboratórios originais, melhora sobremaneira a capacidade técnica de Fiocruz e Butantan entregarem as vacinas da forma que estão fazendo. Uma licença compulsória, definida legislativamente de cima para baixo, dificilmente geraria a cooperação técnica requerida para ofertar as vacinas que estes dois laboratórios estão entregando de forma minimamente tempestiva.
As vacinas produzidas no Brasil se baseiam, primordialmente em tecnologias que utilizam vírus atenuados[7], inativados[8] ou em subunidades[9], sendo as plantas fabris locais adaptadas para a produção desses tipos específicos de vacinas. Já as tecnologias da AstraZeneca, Janssen, Sputnik V[10], Pfizer e Moderna se baseiam em engenharia genética, tecnologia não dominada por Fiocruz e Butantan.
Por fim, um outro ponto relevante a ser destacado diz respeito à possibilidade de surgimento de variantes que vão demandar ajustes nas vacinas e a rapidez deste processo pode ser chave. Isso pode tornar a dependência da ativa cooperação do laboratório original ainda maior, o que não recomenda uma estratégia baseada na licença compulsória, que não pressupõe cooperação, como a adoção do licenciamento em comento.
Em síntese, adotar licença compulsória para as vacinas do covid-19, quer com fundamento na vigente Lei nº 9.279/96, quer com fundamento em nova lei decorrente de projeto de lei em tramitação no Congresso Nacional, apresenta os seguintes problemas: 1) Compromete a correção da falha neste mercado de tecnologia das vacinas, desincentivando o investimento em P&D neste setor; 2) Fiocruz e Butantan já tem acordos com laboratórios estrangeiros que permitem uma cooperação para a transferência da tecnologia produtiva, fundamental para uma produção bem sucedida e rápida da vacina, que provavelmente não existiria com uma solução de licença compulsória, além de contribuir para o Brasil obter expertise em tecnologias não dominadas atualmente; 3) Estes agentes estão sem capacidade ociosa para produzirem vacinas além do que já estão fazendo, tendo em vista que os períodos de ociosidade têm sido causados pela ausência do IFA, que é importado; 4) Estes agentes não têm capacidade técnica para um grande conjunto de vacinas baseadas na engenharia genética; 5) Outros agentes demorariam muito tempo para realizar os investimentos e passar pelos requisitos regulatórios requeridos para iniciar a produção destas vacinas; 6) Eventuais variantes do vírus que requeiram ajustes rápidos nas vacinas demandarão ainda mais cooperação com os laboratórios originais, o que torna a solução litigiosa da licença compulsória ainda mais disfuncional.
Concluindo, mais uma solução simples, que apela fortemente aos nossos anseios de mais solidariedade humana no meio da gigantesca crise sanitária que vivemos, mas que é totalmente equivocada, podendo até ser contraproducente para os atuais acordos da Fiocruz e Butantan com laboratórios estrangeiros.
Uma estratégia mais pertinente seria a de, no curto prazo, envidar esforços junto à comunidade internacional para viabilizar mais acordos entre as grandes indústrias farmacêuticas e países com recursos tecnológicos para a produção de vacinas, equipamentos e medicamentos de combate à Covid-19, a exemplo dos citados acordos firmados por laboratórios brasileiros, dentro de um processo crescente de descentralização da produção mundial, com a facilitação de sua aquisição. A obtenção do know how sobre o modo de produção, dos segredos industriais da fórmula do produto final e da produção dos insumos, em especial do ingrediente farmacêutico ativo, se revela o aspecto mais importante para a ampliação da capacidade de produção de vacinas, em escala mundial.
E, a médio e longo prazo, repensar o vigente sistema global de controle de epidemias, particularmente o papel da Organização Mundial da Saúde – OMS, apoiando, no âmbito jurídico, uma revisão dos dispositivos atinentes do Acordo TRIPs de forma consensuada, como requerem os processos no âmbito da OMC, afastando riscos de retaliações pontuais, tudo isso visando a um combate mais eficiente por parte de todos os países, não só de alguns, da epidemia em curso e das que possam advir no futuro.
[1] docs.wto.org/dol2fe/Pages/SS/directdoc.aspx?filename=q:/IP/C/W669.pdf&Open=True
[2] Ver Artigos 31 e 31A do Acordo TRIPs, este a regrar o dito Sistema do Parágrafo 6.
[3] No Brasil foi editada a Lei nº 9.279, de 1996, cujo Artigo 68 a 71 contemplam a dita licença compulsória.
[4] https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/146245
[5] https://www.weforum.org/agenda/2020/06/vaccine-development-barriers-coronavirus/
[6] https://www.cfr.org/backgrounder/guide-global-Covid-19-vaccine-efforts
[7] Contêm os agentes infecciosos vivos, mas enfraquecidos, sem capacidade de produzir a doença, que é o caso das vacinas contra a caxumba, febre amarela, poliomielite oral, rubéola, sarampo e varicela.
[8] O vírus é inativado por agentes químicos ou físicos, não imita a doença, mas induz o sistema imune a reagir como se fosse contra a doença, como nas vacinas da poliomielite injetável, hepatite A, gripe e raiva.
[9] Utilizam fragmentos do vírus aptos a obter resposta imunológica.
[10] A União Química possui acordo com o Instituto Gamaleya para a produção da Sputnik V no Brasil, apesar de ainda não terem sido obtidas as autorizações sanitárias para a fábrica, para a linha de produção, nem para o imunizante.
[*] Doutor em Economia e Consultor Legislativo da Câmara dos Deputados.
[**] Consultor Legislativo da Câmara dos Deputados.
[***] Consultor Legislativo da Câmara dos Deputados.