Amanda Flávio de Oliveira*
André Santa Cruz**
A política antitruste no Brasil expandiu-se consideravelmente nos últimos tempos.
Diversos fatores podem justificar essa circunstância, entre eles a estabilização monetária, o desenvolvimento do mercado interno e o surgimento de novas tecnologias, produtos e serviços. Mas o principal fator foram os ajustes realizados na legislação específica, cuja origem remonta à década de 1960[1]: alterações sucessivas na lei antitruste brasileira tornaram-na mais assertiva para o enfrentamento de condutas anticoncorrenciais empresariais e o controle de atos de concentração econômica. A dotação de natureza jurídica de autarquia à principal autoridade competente para a matéria – o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) – também constituiu um elemento essencial para o fortalecimento de suas ações.
Mas a realidade e os dados informam que ao acirramento do enforcement da política de defesa da concorrência no Brasil não tem correspondido um mercado nacional efetivamente competitivo. E o seu principal obstáculo pode estar derivando da ação do próprio Estado, e não de agentes privados[2]. É o caso da instituição de excessivas barreiras legais à entrada, da concessão de subsídios ou protecionismos, ou o próprio estímulo oficial deliberado à formação de monopólios, em alguns mercados. É também a situação em que as medidas regulatórias derivadas do exercício de poder normativo aumentam os custos de transação, especialmente sem propiciar benefícios que as justifiquem.
É de se reconhecer que parcela considerável dos processos de controle repressivo de condutas das empresas em tramitação e julgamento no CADE relaciona-se a mercados regulados[3]. Relembre-se que barreiras regulatórias são hábeis em criar um ambiente propício para a prática de condutas empresariais questionáveis do ponto de vista concorrencial. Por sua vez, a atividade profissional prática igualmente revela a angústia de agentes econômicos submetidos a múltiplas autoridades e, em alguns casos, devendo atendimento a normas ou diretrizes conflitantes entre si[4].
Entretanto, se a própria lei reconhece o risco de a livre concorrência estar sendo obstada exatamente em razão de uma ação oficial, atribuindo às autoridades antitruste federais, por exemplo, o dever de “requisitar dos órgãos e entidades da administração pública federal e requerer às autoridades dos Estados, Municípios, do Distrito Federal e dos Territórios as medidas necessárias ao cumprimento desta Lei” (art. 9º, inciso VIII), bem como de “promover a concorrência em órgãos de governo” (art. 19), a jurisprudência administrativa do CADE tem se mostrado cautelosa em temas de intercessão entre regulação e concorrência quando em análise de casos de condutas empresariais. Uma parte dessa cautela pode-se se justificar. Quanto à outra, entende-se que a Lei de Liberdade Econômica cuidou de esclarecer.
Refere-se, no ponto, à discussão acerca dos limites e possibilidades da atuação antitruste em relação a entes estatais. Especificamente, pondera-se sobre as fronteiras de ação autorizadas ao Conselho, uma vez que ele possui a atribuição de conduzir processos investigativos e de punir condutas anticoncorrenciais e que o artigo 31 da lei antitruste, ao especificar os sujeitos passivos a ela submetidos, não exclui entes estatais de sua relação[5].
A doutrina especializada tem identificado algum padrão de julgamento do CADE nessas circunstâncias[6]. De forma geral, nota-se, sobretudo em setores altamente regulados, que o Conselho tem adotado uma atitude de cautela e se valido de teorias norte-americanas para o deslinde do caso. Trata-se das construções oriundas de decisões da Suprema Corte americana, conhecidas como “State Action Doctrine” e “Pervasive Power Doctrine”, que têm como finalidade precípua identificar se uma dada política pública ou ato administrativo estaria ou não imune à aplicação da lei antitruste. Ambas vêm sendo utilizadas como critérios balizadores em julgados proferidos na instância administrativa brasileira, não sem alguns temperamentos, na intenção de “internalizar” um modelo estrangeiro às premissas do ordenamento jurídico brasileiro. Severas críticas, todavia, podem ser realizadas à opção da autoridade de sustentar-se em fundamentos construídos em uma realidade, inclusive federativa, bastante distinta da brasileira, para a tomada de decisão nos casos concretos, embora se reconheça o esforço para adaptá-las. Relembre-se, igualmente, que o direito antitruste americano é eminentemente judicial, ao passo que o brasileiro se desenvolve precipuamente em âmbito administrativo, em que uma autarquia, integrante da administração pública indireta federal, instaura, instrui e decide os casos. As bases estruturantes de uma e outra jurisdição, pode-se ver, são diferentes em essência, o que põe em questionamento a validade de soluções desenvolvidas para um modelo serem adequadas para o outro.
Entretanto, a Lei de Liberdade Econômica positivou, de forma expressa, um ilícito denominado “abuso de poder regulatório”, inclusive tipificando condutas a esse título (art. 4º da Lei 13.874/2019). Essa nova disciplina deverá, necessariamente, a partir de agora, ser levada em consideração na fundamentação das decisões do Conselho em casos em que a regulação estatal estiver em jogo, assim como na definição das medidas a serem determinadas por ocasião do julgamento dos casos. Afasta-se, com ela, qualquer dúvida acerca da imunidade ou não de entidades estatais à legislação antitruste. A identificação e configuração do ilícito de abuso de poder regulatório, no caso concreto, por parte da autarquia, ensejará, necessariamente, seu dever de atuar para afastá-lo.
Caberá, portanto, ao Conselho, uma postura mais assertiva que a mera recomendação ou solicitação de conformidade a entidades públicas responsáveis pela produção de atos anticompetitivos. Não se espera, com isso, que o CADE imponha sanções a entidades públicas, exatamente. Tomemos, por exemplo, a hipótese de produção de uma norma regulatória com efeitos anticoncorrenciais por parte de uma agência reguladora federal. Sabe-se que decisões dessas autarquias especiais não se submetem nem mesmo a recurso hierárquico, e isso constitui uma das garantias de sua independência e autonomia políticas. Até aí, a cautela historicamente desempenhada pelo CADE é adequada e em nada se altera com a Lei de Liberdade Econômica. Não há autorização no ordenamento jurídico para a aplicação de sanção pelo CADE nessa situação.
Mas a ilicitude identificada da norma produzida por uma autarquia federal, por exemplo, por parte do Tribunal Administrativo de Defesa Econômica, tampouco poderá ser “minimizada” com a aplicação de teorias estrangeiras. A determinação, à Procuradoria do CADE, de acionamento da Advocacia Geral da União (AGU) para providências, aparentemente, passa a ser mandatória. Observe-se que existe a possibilidade de conflitos entre entes públicos representados pela AGU em matérias variadas, e não apenas em antitruste e regulação. Para equacionar o problema, há algum tempo foi criada uma câmara de conciliação interna. Não há qualquer ineditismo, portanto, nessa providência. Por fim, reitere-se que a identificação de ilicitude de um ato administrativo pelo CADE autoriza, igualmente, aos agentes privados, o ingresso em juízo, com base na Lei de Liberdade Econômica, visando a sua suspensão ou revogação, e, até mesmo, eventual reparação civil por danos sofridos.
Ao privilegiar a aplicação da norma brasileira, em detrimento de teorias estrangeiras, conforme defendido neste texto, o CADE cumprirá seu dever e superará uma antiga jurisprudência, caminhando rumo à segurança jurídica, mas, principalmente, rumo ao empenho à implementação de um mercado efetivamente competitivo no Brasil.
[1] Atualmente, encontra-se em vigor a Lei n. 12.529, de 2011.
[2] André Santa Cruz defende ser a única função legítima de uma lei antitruste o combate aos “ataques à livre concorrência levados a cabo pelo próprio Estado. Ramos, André Luiz Santa Cruz. Os Fundamentos Contra o Antitruste . Rio de Janeiro: Forense, 2015.
[3] Recomenda-se o vídeo do webinar sobre abuso de poder regulatório promovido pelo IBRAC em 2020, em que o ponto é tratado: https://www.youtube.com/watch?v=3-JAe9XumZ8&t=4646s
[4] Um exemplo de atuação conflituosa entre autoridades, ainda pendente de solução, repousa na cobrança da taxa equivocadamente denominada THC2, que se refere à movimentação de contêineres cobrada pelos terminais molhados aos portos secos. Recente acordo de cooperação técnica firmado entre o CADE e a ANTAQ tem como um de seus propósitos melhor encaminhar essa questão. Aguarda-se com entusiasmo os resultados dessa iniciativa. Sobre o tema, confira: OLIVEIRA, Amanda Flávio de. Advocacia da concorrência no Brasil – o caso dos transportes. In Advocacia da concorrência em setores regulados: a história contada por especialistas. MENDONÇA, Elvino de Carvalho; MENDONÇA, Rachel Pinheiro de Andrade (orgs). Brasília: WebAdvocacy, 2020, p. 39-44.
[5] Art. 31. Esta Lei aplica-se às pessoas físicas ou jurídicas de direito público ou privado, bem como a quaisquer associações de entidades ou pessoas, constituídas de fato ou de direito, ainda que temporariamente, com ou sem personalidade jurídica, mesmo que exerçam atividade sob regime de monopólio legal.
[6] Recomenda-se a respeito: PEREIRA NETO, Caio Mário da Silva; PRADO FILHO, José Inacio Ferraz de Almeida. Espaços e interfaces entre regulação e defesa da concorrência: a posição do CADE. Revista Direito GV, vol. 12, n. 1, jan-abr 2016, p. 13-48.
[*] Professora dos cursos de graduação mestrado e doutorado da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB). Sócia Fundadora do escritório Advocacia Amanda Flávio de Oliveira (AAFO). Doutora, Mestre e Especialista em Direito Econômico pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
[**] Procurador federal e doutor pela PUC-SP.