Amanda Flávio de Oliveira*

Ana Sofia Cardoso Monteiro Signorelli**

Em recente aula no curso da European University Institute, o badalado Professor William Kovacic, ele próprio um ex-membro da Federal Trade Comission (FTC), principal entidade antitruste americana, enfrentou com firmeza e coragem um tema contemporâneo da maior relevância para os interessados nessa matéria. Trata-se da pretendida “transformação” do antitruste americano, patrocinada pelo governo Biden.

A “transformação” revela-se sob a forma de um movimento que se pretende reconhecer como valoroso e virtuoso e/ou um tanto disruptivo, confrontando uma suposta política pública injusta vigente. Sua narrativa é de fato hábil a seduzir adeptos apressados para essa suposta superioridade, e algum encantamento parece rondá-lo, com reflexos inevitáveis fora das fronteiras americanas.

O que Kovacic fez, em sua aula, no início do mês de outubro, foi enfrentá-lo sob uma outra perspectiva – a de que talvez não haja nada de disruptivo na proposta do movimento. Em verdade, mais provável é que ele represente o retorno a algo que já não deu certo no passado, isso é, o programa talvez tenha mais pontos frágeis do que deveria ter. Mas, sobretudo, o que fez Kovacic foi relembrar que política pública não se faz com emoção, e, ao contrário, requer prudência e circunspeção em seu desenho e implementação.

Vamos aos fatos.

Lina Khan, nova chefe da FTC, em Memorando direcionado à sua equipe, traçou as novas diretrizes para a atuação da Comissão. Os termos do Memorando já eram mais ou menos esperados, e segue a linha de seu artigo “The Amazon Paradox”. Como recursos deixaram de ser um problema, uma vez que o presidente Biden declarou publicamente que asseverar a política concorrencial será uma prioridade do seu governo, o propósito agora parece ser apenas uma questão de organizar a casa para colocar as 50 prioridades enumeradas por Khan em jogo.

Kovacic classifica essa linha como sendo “transformacionista” e a compreende não como uma mudança filosófica, mas geracional. De fato, o movimento, aparentemente, tem dificuldade em receber um nome “oficial” e muitas vezes é referido como hipster – o que não parece ser a solução mais politicamente correta, e a alcunha revela-se um tanto pejorativa. A tentativa de conceder-lhe nobreza, denominando-o neobrandesiano, tampouco parece soar adequado: um estudo um pouco mais aprofundado sobre a biografia daquele a quem se visa “homenagear” aponta uma grande incongruência entre suas ideias e a nova política. Observe-se que Louis Brandeis era, por exemplo, um defensor da legitimidade dos carteis[1].

Beneficiando-se de uma atual coalizão entre democratas e republicanos, Lina e sua equipe colocam-se à serviço do presidente dos Estados Unidos no combate à herança que aparentemente haveria sido deixada durante a gestão democrata anterior, liderada pelo ex-presidente Obama. Elegem como adversário central as denominadas “Bigtechs”, e que também pode ser representado pela sigla F.A.G.A. (Facebook, Apple, Google e Amazon). As mesmas ideias e empresas que há poucos anos os EUA exportaram para o mundo como modelos de negócios irrecusáveis transmutam-se em vilões da sociedade americana, merecedores de castigo e punição.

Nesse sentido, desafia-se, fundamentalmente, a ideia originalmente proposta por Robert Bork, autor de “The Antitrust Paradox”, que defendeu a tese de que o direito concorrencial não poderia servir à defesa de concorrentes, mas da concorrência, e de que sua finalidade essencial seria maximizar o bem-estar do consumidor. Essa perspectiva, rotulada de “libertária”[2], expandiu-se e influenciou outras jurisdições, além da americana.

Entretanto, segundo os transformacionistas, a opção de política concorrencial sugerida por Bork teria cobrado seu preço. De acordo com sua narrativa, no ano de 2020, aproveitando-se da oportunidade gerada pela pandemia, as bigtechs teriam mostrado suas garras, catapultando seu crescimento com a maior dependência digital da população. Elas não teriam haveriam, todavia, alcançado todo esse poder não fosse a benevolência com que a perspectiva de Bork as tratou: e deixou chegar onde chegaram. Essa narrativa sustenta cada uma das 50 prioridades indicadas por Khan.

Se existe uma advertência sóbria na avaliação de políticas públicas é de que elas não devem ser julgadas pelas suas intenções, mas pelos seus resultados[3]. Entretanto, Khan, justificando-se por suas boas intenções, parece pretender alterar a interpretação dos Tribunais quanto aos objetivos da legislação antitruste americana, tendo como estratégia subsidiária a possibilidade de  alterar a própria norma.

Assim, adota-se o lema “na dúvida, processe”. Não coincidentemente, o lema parece alinhar-se à analogia utilizada por Bork para ilustrar o antitruste nos Estados Unidos anterior à sua proposta: trata-se da figura de um xerife da cidadezinha fronteiriça que não se importa em coletar evidências, distinguir suspeitos ou resolver crimes, mas simplesmente anda pela rua principal da cidade atirando aleatoriamente em alguns suspeitos.

Enquanto Lina e sua equipe correm contra o tempo de mandato para “organizar a casa” (ou derrubá-la e reerguê-la), a mensagem que transmitem ao resto do mundo é clara: estivemos pregando um falso evangelho. Daqui para frente, cada um que siga o seu rumo – preferencialmente, no sentido contrário ao que fazíamos ao longo das últimas décadas, afinal, estava tudo errado. Segundo adverte Kovacic, é provável que doutrinadores e futuros acadêmicos embarquem na onda e propugnem pela “nova” perspectiva por um longo tempo. Todavia, a proposta derrapa em fragilidades importantes, de ordem política e técnica, e que seriam condições necessárias para a sua implementação.

Politicamente, coalizões nem sempre são perenes, e não se sabe por quanto tempo a proposta por ora apenas desenhada encontrará alinhamento. Discursos que caem bem em campanhas eleitorais não necessariamente são implementáveis – ainda bem. Ademais, recursos públicos são escassos e prioridades governamentais mudam.

No aspecto técnico, claramente estar-se-ia superestimando a capacidade de implementação de uma mudança completa, de uma só vez. Definir prioridades em políticas públicas é fulcral e revela-se imaturo pretender ter 50 prioridades. “Não é possível obter êxito quando se tem 50 prioridades, o êxito ocorre quando se tem 5”, nas palavras de Kovacic. Mas o ponto mais vulnerável do processo revela-se na frágil compreensão histórica que ele carrega: é preciso aprender com o passado. Há suficientes exemplos dos anos 1970 e início de 1980 de atuação das entidades americanas bastante alinhado ao que ora se apresenta como “disruptivo”. É preciso aprender com seus resultados. Foram eles alvissareiros?

Antes que o leitor advirta para o risco de Kovacic próprio estar enciumado com a possibilidade de se reduzir a importância do passado da FTC (do qual ele próprio fez parte) , importa informar ser desejável e cientificamente valorosa a crítica ao modelo em vigor nos últimos tempos, assim como enunciar o interesse no aprimoramento da política antitruste. Há outras perspectivas possíveis sobre o ponto, todavia. O problema, e nesse sentido parece ter razão Kovacic, encontra-se no festejo acrítico a um modelo ideológico que pretende combater outro – como se o “novo” fosse valoroso e justo, ao passo que o anterior teria sido elitista e injusto. Igualmente parece pertinente a recomendação por prudência e maturidade: aprimoramentos institucionais se fazem com parcimônia, não com açodamento. A cautela indica que, em se tratando de política pública, reformas são sempre preferíveis a revoluções, sobretudo em uma sociedade complexa e diversificada como a contemporânea. Do mesmo modo, convém assegurar-se da capacidade do “método” (ou do Programa) de alcançar os objetivos visados, retomando a ponderação de que boas intenções não são hábeis a conduzir a bons resultados. Também se faz imprescindível refletir sobre as limitações e falibilidades naturais dos agentes públicos, mesmo no que se refere à atuação técnica.

Kovacic foi corajoso ao criticar um modelo que parece encantar pela virtuosidade. Reflitamos.


[1] Saiba um pouco mais sobre isso em McCRAW, Thomas K. Prophets of regulation. Cambridge, Massachusetts and London: The Bellknap Press of Harvard, 1984.

[2] O termo “liberal”, em inglês, costuma ser associado a uma visão de Estado mais próxima do que se conhece como “social democracia” no Brasil. Assim, costuma-se utilizar a palavra “libertária” para se referir a um modelo de Estado mínimo, ou de uma preferência pelo protagonismo privado na seara econômica.

[3] A frase é de Milton Friedman.

[*] Advogada. Doutora e Mestre em Direito Econômico pela UFMG. Professora dos cursos de graduação, mestrado e doutorado em Direito da UNB. [**] Advogada, economista e Internacionalista. Mestre em Administração de Empresas pelo COPPEAD/UFRJ. Doutoranda em Direito Comercial da USP. Atualmente Chefe de Assessoria Técnica da Presidência do Cade.

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