Polyanna Vilanova*
Isabel Jardim**
Ana Flávia Napoli***
O mundo está sempre em evolução e, com a expansão da internet, as mudanças ocorrem em uma velocidade impressionante, impulsionadas por inovações tecnológicas que afetam a forma como vivemos e como os negócios são feitos. Se o Direito usualmente tem dificuldades para acompanhar o ritmo dos passos da sociedade, agora este desafio se torna ainda maior.
Nos últimos anos, a tecnologia blockchain vem ocupando lugar central nas discussões sobre inovação, sendo apontada por muitos pesquisadores e tomadores de decisão dos setores público e privado com atuação nas mais diversas áreas e não apenas no Direito, como uma das mais expressivas transformações na ordem econômica e social das últimas décadas. Segundo um estudo realizado pelo Fórum Econômico Mundial, é possível que dez por cento do produto interno bruto global esteja armazenado em blockchain em 2027.[i]
A tecnologia, conforme descrito no relatório do Instituto de Tecnologia e Sociedade do Rio sobre blockchain, carrega em seu nome o significado: “trata-se de uma base de dados organizados através de blocos encadeados, ou seja: interligados sequencialmente e de forma ordenada, criando um histórico transparente e imutável de transações e registros nela armazenados”.[ii]
A blockchain é, dessa forma, um registro digital de transações, porém, devido às suas características, não se resume a um mero banco de dados. Isto porque a blockchain é descentralizada, o que significa que a rede não é controlada por uma entidade única ou central, como, por exemplo, uma instituição bancária relativamente às transações financeiras; e é também distribuída, dado que os registros são compartilhados com todos os participantes da rede em que as transações são armazenadas. Ainda, estes registros são distribuídos de forma segura, verificável e permanente, por meio do uso de tecnologias de criptografia[iii].
Nas palavras de Emmanuelle Ganne, analista do Economic Research and Statistics Division do World Trade Organization (WTO), “o blockchain permite a criação de um livro-razão compartilhado e confiável em que todos os participantes podem acessar e verificar a qualquer momento, mas que nenhuma parte pode controlar”.[iv] A autora pondera, no entanto, que “o mundo do Blockchain” é complexo e sofre alterações constantes, de modo que as definições e classificações são mutáveis.
Ainda com relação à conceituação desta tecnologia, cumpre destacar, em linha com a afirmação de Ganne citada supra, que existem diversos modelos de blockchain, que variam quanto ao grau de descentralização e acesso, à identificação da identidade dos participantes, aos mecanismos de consenso, à velocidade, ao nível de privacidade, ao consumo de energia, ao pagamento de taxas, dentre outros aspectos. Da mesma forma, a blockchain também varia quanto aos seus possíveis usos e finalidades.
Segundo a OCDE, embora exista uma grande gama de variações nos usos e recursos das blockchains, já existem algumas classificações importantes, especialmente com relação à abertura do acesso da plataforma (pública ou privada) e à permissão para adicionar informações à blockchain (com ou sem permissão).[v]
As blockchains públicas são abertas para o acesso de todos, enquanto as privadas só podem ser acessadas por um grupo determinado de pessoas. Nas blockchains com necessidade de permissão, apenas um grupo selecionado de usuários pode gerar transações, registrá-las e verificar novos blocos, enquanto nas blockchains que não necessitam de permissão qualquer usuário pode acessar e adicionar dados.[vi]
Atualmente, diversos autores também classificam esta tecnologia em três gerações, sendo a primeira a das criptomoedas, a segunda dos contratos inteligentes (smart contracts) e a terceira, em que atualmente nos encontramos, são das demais formas de utilização na economia de compartilhamento.[vii]
Cada vez mais conhecido do público geral, o Bitcoin é uma criptomoeda de blockchain de primeira geração e surgiu como a primeira aplicação da tecnologia, em 2008. O Bitcoin é um exemplo de blockchain pública, descentralizada, que não conta, portanto, com nenhuma entidade de controle e que opera com a participação de todos os membros da plataforma (sem necessidade de permissão ou “permissionsless”).
Já smart contracts, que figuram na segunda geração de blockchain, podem ser definidas como “distributed applications created and run over the blockchain, which consist of self-executing contracts written as code on DLT ledgers, automatically executed upon reaching pre-defined trigger events written in the code”.[viii]
Como bem descrito por Guilherme Resende citando a obra “Blockchain + Antitrust – The Decentralization Formula” de Thibault Schrepel (2021), “a terceira [geração] (blockchain 3.0) abrange todos os outros usos do blockchain, incluindo mídias sociais, pesquisas online, entre outras aplicações como os produtos e serviços geralmente descritos como economia de compartilhamento”.[ix]
Ao observar o veloz desenvolvimento da tecnologia blockchain,nota-se que sua utilização vai muito além das criptomoedas e que tem se tornando cada vez mais popular, especialmente entre empresas. Como exemplos, podemos citar a gigante dinamarquesa do ramo de transporte e logística, Maersk, que digitaliza informações da sua cadeia de suprimentos com uso do blockchain desde 2018. A rede Carrefour, por seu turno, atualmente monitora com blockchain mais de 30 linhas de produtos na cadeia de compra, por meio de um QR code fixado aos produtos que apresenta informações aos clientes sobre a origem dos alimentos. A Daimler, montadora de veículos de luxo Mercedes-Benz usa a tecnologia para agilizar diversos processos, desde a produção até a arrecadação de fundos.[x] Estes são apenas alguns exemplos dentre milhares de empresas que já utilizam e desenvolvem a blockchain com diferentes propósitos.
Com tantas mudanças no funcionamento de mercados já conhecidos pelas agências antitruste do mundo, bem como com o surgimento de mercados novos, não demorou para que a relação entre o Direito Antitruste e o blockchain fosse suscitada.
Notadamente a partir de 2018, agências de defesa da concorrência e organizações intergovernamentais, como a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), passaram a lançar luz sobre este tema por meio da publicação de papers importantes, além da produção de documentos de trabalho e da organização de eventos internacionais para o debate e difusão das discussões sobre a interface entre blockchain e defesa da concorrência. Além das discussões na OCDE, diversos estudos sobre este assunto passaram a ser publicados no mesmo ano.
Destaca-se o paper publicado por Schrepel em junho de 2018, intitulado “Is Blockchain the Death of Antitrust Law? The Blockchain Antitrust Paradox”, que descreveu os desafios que a blockchain apresenta para análises de práticas anticompetitivas unilaterais e propôs mudanças na legislação e regulamentos antitruste que abordem este tipo de desafio.
Também merece destaque o artigo “Blockchain Competition”, de Ioannis Lianos, publicado no mesmo ano. O paper analisou como a blockchain pode contribuir para a vantagem competitiva, fornecendo uma análise detalhada das implicações da tecnologia de blockchain nas leis de defesa da concorrência e na sua aplicação.
Na OCDE, também em 2018, foi realizado o OECD Global Blockchain Policy Forum, primeira grande conferência internacional a apresentar um balanço dos impactos da blockchain em uma variada gama de atividades governamentais e prioridades públicas.
O fórum abordou os benefícios e riscos da blockchain para as economias e sociedades e buscou identificar boas práticas e boas abordagens regulatórias, além de ter investigado o uso da tecnologia em áreas políticas específicas.[xi] O evento, que contou com a participação de mais de 1000 profissionais, especialistas, acadêmicos e outras partes interessadas dos setores público e privado, focou em cinco assuntos principais: i) o potencial impacto econômico global da blockchain, ii) as implicações na privacidade e segurança cibernética iii) o uso da blockchain para aumentar a inclusão, iv) o uso da blockchain para promover a sustentabilidade e v) o uso da blockchain para fortalecer as práticas de governança e fiscalização.[xii]
Nos anos seguintes, 2019 e 2020, o fórum buscou avaliar o desenvolvimento da blockchain desde os últimos eventos e os desafios específicos de implementação e adoção da referida tecnologia. Além disso, foram discutidas as respostas de políticas emergentes à tecnologia e apresentadas as melhores práticas identificadas em iniciativas públicas de blockchain em todo o mundo.
Na quarta edição do fórum, em 2021, além da apresentação e discussão dos temas das edições anteriores, os debates se aprofundaram nos desenvolvimentos mais recentes da tecnologia e nos desafios emergentes em todos os níveis de governança, “from strengthening cross-border flows and international regulatory cooperation, to better connecting companies with investors and capital, and bringing new levels of transparency to the digital economy and control over our lives online”.[xiii]
Nessa mesma direção, em 2018 o Department of Justice (DOJ) dos Estados Unidos iniciou uma investigação no mercado de criptomoedas.[xiv] Posteriormente, em 2021, a lei antitruste e a blockchain se encontraram na corte americana, no julgamento do caso Bitmain, no qual um desenvolvedor de criptomoedas e uma empresa de mineração processaram mineradores, desenvolvedores e operadores da Bitcoin Cash, criptomoeda criada em 2017, por suposta violação à Seção 1 da Sherman Act e à Seção 4 do Clayton Act. Ao final do julgamento, o tribunal rejeitou a denúncia apresentada por entender que não restou devidamente comprovada a infração anticompetitiva.
No mesmo ano, o DOJ anunciou a criação de um time para liderar investigações e processos complexos que envolvam o uso ilícito de criptomoedas e blockchain, o National Cryptocurrency Enforcement Team.[xv]
Além da preocupação com os possíveis riscos no uso destas tecnologias, o DOJ também vem expressando sua preocupação em proteger a inovação. Nesse sentido, Makan Delrahim, chefe da Divisão Antitruste do Departamento de Justiça dos EUA, ainda em 2020, elogiou o potencial das plataformas baseadas em blockchain para impedir ou limitar o poder de mercado, eliminando ou reduzindo a necessidade da figura de um intermediário que normalmente opera entre os participantes de plataformas digitais, permitindo assim “todos os benefícios dos efeitos de rede, minimizando ou eliminando o poder de mercado que normalmente vem com esses benefícios”.[xvi]
Sobre este ponto, Delrahim destacou que a capacidade de reduzir os custos de rede tem implicações importantes para os mercados analisados pelas agências antitruste, tanto nas investigações de condutas anticompetitivas quanto nas análises de atos de concentração.
A autoridade europeia também vem se debruçando sobre o tema nos últimos anos e expressa apoio para a exploração e desenvolvimento das tecnologias de blockchain na União Europeia desde 2018. Durante a EU Blockchain Roundtable, realizada em novembro daquele ano, a Comissão Europeia anunciou a criação da “International Association for Trusted Blockchain Applications“, que trabalha em estreita colaboração com a agência antitruste europeia e com os Estados-Membros e é aberta a qualquer organização disposta a trabalhar na implantação de blockchain e distributed ledger technologies (DLT) para transformar os serviços digitais.[xvii]
Nos anos seguintes, a Comissão Europeia realizou diversos eventos e fóruns para discussão da interface entre antitruste e blockchain e tecnologias DLT, além de discussões sobre as oportunidades que estas tecnologias podem gerar para o aprimoramento dos mais diversos setores, como de saúde, transporte, varejo entre outros.
Em outras jurisdições, como no Brasil, o blockchain também está na mira de autoridades e pesquisadores, os quais buscam compreender os riscos e as potencialidades destas tecnologias. Há em trâmite no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) uma investigação que envolve a imputação aos grandes bancos or supostas infrações à ordem econômica ao dificultar o acesso de corretoras de criptomoedas ao sistema bancário[xviii], implicando necessariamente na análise da tecnologia blockchain. Outras investigações provavelmente surgirão, tendo em vista a velocidade da expansão, exploração e desenvolvimento da blockchain e DLT em todo o mundo. Além disso, a autarquia é reconhecida pelo seu esforço constante em acompanhar as mudanças ocorridas nos mercados e em implementar as mudanças necessárias para a melhor aplicação da lei antitruste no País, seguindo as melhores práticas internacionais.
Diante deste cenário de profundas e velozes transforrmações e dado o potencial da blockchain e outras tecnologias digitais de transformarem nossas vidas e nossa forma de fazer negócios, empresas, governos, organizações internacionais e da sociedade civil, programadores, profissionais de tecnologia e acadêmicos de todas as áreas, além do próprio Cade, devem continuar trabalhando em conjunto para compreender e avaliar as implicações práticas e jurídicas destas tecnologias e desenvolver soluções para os desafios existentes e os vindouros sem jamais perder de vista a importância da proteção e do estímulo à inovação.
[i] World Economic Forum. Technology Tipping Points And Societal Impact, Survey Report 24. Set. 2015. Disponível em: < https://www.weforum.org/reports/deep-shift-technology-tipping-points-and-societal-impact > Acesso em 23 de dezembro de 2021.
[ii] ITS Rio. Relatório Blockchain para aplicações de interesse público. Página 8. Disponível em: < https://itsrio.org/wp-content/uploads/2019/03/Relat%C3%B3rio-ITS-GE-Blockchain-vFinal.pdf > Acesso em 24 de dezembro de 2021.
[iii] Ganne. Emmanuelle. World Trade Organization. 2018. Can blockchain revolutionize international trade? Disponível em: < https://www.wto.org/english/res_e/booksp_e/blockchainrev18_e.pdf > Acesso em 23 de dezembro de 2021.
[iv] Ganne. 2018. Ibid., p. 1.
[v] OCDE. 2018. Blockchain Primer. Disponível em: < https://www.oecd.org/finance/OECD-Blockchain-Primer.pdf >. Acesso em 2 de janeiro de 2022.
[vi] OECD. 2018. Ibid.
[vii] Schrepel, T. (2021) Blockchain + Antitrust: The Decentralization Formula. Edward Elgar Publishing Disponível em: < https://www.elgaronline.com/view/9781800885523.xml. >. Acesso em 2 de janeiro de 2022.
[viii] OECD. 2021. Regulatory Approaches to the Tokenisation of Assets, OECD Blockchain Policy Series. Disponível em: <
https://www.oecd.org/daf/fin/financial-markets/Regulatory-Approaches-to-the-Tokenisation-of-Assets.pdf >. Acesso em 2 de janeiro de 2022.
[ix] Resende, G. M. 2021. Alguns apontamentos sobre antitruste e bitcoin. Revista Consultor Jurídico. Disponível em: < https://www.conjur.com.br/2021-dez-17/defesa-concorrencia-alguns-apontamentos-antitruste-bitcoin >. Acesso em 5 de janeiro de 2022.
[x] Estas e outras informações podem ser acessadas em: https://forbes.com.br/forbes-money/2021/02/blockchain-50-as-empresas-que-mais-usaram-a-tecnologia-no-ultimo-ano/
[xi] OECD. 2018. https://www.oecd.org/corporate/oecd-blockchain-policy-forum-2018.htm
[xii] Mais informações sobre o evento podem ser acessadas em: https://www.oecd.org/finance/oecd-blockchain-policy-forum-2018.htm
[xiii] OECD Global Blockchain Policy Forum 2021. https://www.oecd.org/daf/ca/oecd-blockchain-policy-forum.htm
[xiv] O fato foi noticiado por diversos meios de comunicação, como no sítio eletrônico da Competition Policy International: https://www.competitionpolicyinternational.com/eeuu-doj-investiga-manipulacion-a-mercados-de-cripto-monedas/
[xv] Department of Justice. Out. 2021. Press Release Number 21-974. Disponível em: < https://www.justice.gov/opa/pr/deputy-attorney-general-lisa-o-monaco-announces-national-cryptocurrency-enforcement-team >. Acesso em 6 de janeiro de 2022.
[xvi] Department of Justice. Out. 2021. Ibid.
[xvii] European Comission. News Article. Publication 21. Nov. 2018. Disponível em: < https://digital-strategy.ec.europa.eu/en/news/eu-blockchain-roundtable-supports-efforts-deploy-blockchain-technologies-eu >. Acesso em 6 de janeiro de 2022.
[xviii] Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). https://sei.cade.gov.br/sei/modulos/pesquisa/md_pesq_processo_exibir.php?0c62g277GvPsZDAxAO1tMiVcL9FcFMR5UuJ6rLqPEJuTUu08mg6wxLt0JzWxCor9mNcMYP8UAjTVP9dxRfPBcSmM4M2ETTN1Mv7wWLGnEUiWmCLsr9jExmU5t47oOILQ Acesso em 8 de janeiro de 2022.
[*] Sócia no Vilanova Advocacia e Ex-Conselheira do Cade. Doutoranda em Ciência Política pela Universidade de Lisboa. Mestre em Direito Público pelo IDP. Especialista em Direito Econômico e Defesa da Concorrência pela FGV
[**] Advogada Antitruste no Vilanova Advocacia. Especialista em Direito Econômico e Defesa da Concorrência. Trabalhou como assistente na Superintendência-Geral do Cade e como assessora no Tribunal da autarquia.
[***] Advogada no Vilanova Advocacia, graduada em direito pelo Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP), participante do grupo de pesquisa em Direito Econômico e Concorrencial do IDP e fundadora do CONEDIR (Congresso Nacional dos Estudantes de Direito).