Amanda Flávio de Oliveira
Neste dia 09 de outubro de 2021 completam-se 20 anos da morte de Roberto Campos. Que falta ele faz. Um analista perspicaz, um erudito que conseguia exprimir suas ideias de forma sempre clara, um debatedor implacável, um crítico ácido, dono de um humor desconcertante pela capacidade de revelar o óbvio incômodo que gostamos de esconder. Acima de tudo, Campos era um lúcido e um corajoso.
Lucidez é condição nobre pouco cultuada, porque muitas vezes inconveniente. Seres humanos deixam de ser crianças, mas o anseio pelo mundo da fantasia os persegue na vida adulta. Ouvir o que se quer ouvir é sempre mais prazeroso do que ouvir a verdade. Mas a verdade é implacável.
Coragem é virtude escassa. Silenciar-se ou alinhar-se à maioria barulhenta sempre significou o caminho mais confortável, mesmo que às custas de se sacrificar valores nobres ou de se cometer injustiças. O homem público lúcido e corajoso não tolera populismos, não tolera oportunismos, não tolera mediocridade. Nem por isso o corajoso precisa ser rude, e quando a coragem se encontra com a urbanidade, tem-se uma personalidade incomum, embora não necessariamente compreendida.
Roberto Campos foi membro da Assembleia Constituinte, e, por isso, uma voz isolada em um dos mais graves momentos de irracionalidade oficial nacional: ele presenciou, entre consternado e indignado, os rumos que o Brasil estava se determinando a seguir. Mas não se calou e o registro em vídeo e texto de suas inquietações perpetua provocações ignoradas, e revela vaticínios evitáveis.
Todo estudante de início de graduação em Direito é apresentado à denominação de forte apelo emocional atribuída ao Texto de 1988: Constituição Cidadã é seu nome. Cultuar o Texto faz parte da formação do acadêmico em Direito no Brasil, em grande medida, nos últimos 30 anos. À alcunha de “cidadã” não corresponde a análise de Campos, que, ainda no calor do processo de sua construção foi mais assertivo, e em igual medida mais incômodo: tem-se, em verdade, um “Reservatório de Utopias”. Aos seus olhos, os constituintes puseram-se a “brincar de Deus”.
No universo isento de limites em que se encontravam, com atrevida criatividade e pouca racionalidade, os constituintes esbaldaram-se. Fixaram percentual máximo anual da taxa de juros reais. Transformaram serviços oferecidos no mercado em direitos fundamentais, a serem prestados pelo Estado, prometendo aos cidadãos o oferecimento de educação, saúde, trabalho, lazer, segurança, previdência social, entre outros, sem definição de limite e sem clara indicação da fonte de receita correspondente. Nas palavras de Campos, urgia aprender a distinguir “entre ‘garantias não onerosas’, que podem ser enunciadas desembaraçadamente, e as ‘garantias onerosas’, que devem ser cuidadosamente medidas para não se confundir o desejo com a realidade, e as aspirações da sociedade com sua capacidade efetiva de prover satisfações.”
À redação generosa seguiu-se também uma interpretação generosa. Especificamente no que concerne ao direito social à saúde (ou garantia onerosa de saúde), a redação assertiva presente no início do artigo 196 ( “A saúde é direito de todos e dever do Estado”) recebeu clara restrição em seguida (“garantido mediante políticas sociais e econômicas…”), solenemente desprezada em milhares de decisões judiciais. A judicialização da saúde tornou-se um desafio aos Poderes.
Sua versão original logo se revelou “biodegradável”, como previa Campos. Nacionalista além da conta, estatizante, corporativista, indecisa entre presidencialista e parlamentarista, consagrando planejamento estatal ao tempo em que o socialismo ruía mundo afora, não tardou a que mudanças se fizessem necessárias. Equívocos claros foram expurgados por meio de algumas das centenas de emendas que lhe alteraram o conteúdo. Mas excessos persistem, resistem, sustentados na retórica “social” descomprometida com resultados e sustentados pelas infindáveis normas de hierarquia infraconstitucional que fartamente detalharam as tais “conquistas sociais”.
A maturidade revela que não se pode brincar de Deus impunemente. Aos 33 anos, faz-se tempo para amadurecimento.
Em evento datado de 1988, convidado a falar sobre a Constituição que surgia, Roberto Campos advertiu para as perguntas fundamentais que não haviam sido feitas no processo de sua formulação: quais são as consequências e quem vai pagar a conta? E profetizou: “Fala-se em conquistas sociais, em avanços sociais, como se fosse possível eliminar a pobreza por decreto.”
Eliminar a pobreza, instituir uma sociedade desenvolvida, passa, necessariamente, por propiciar um ambiente de confiança e de respeito a instituições, ao contrato e à propriedade, que não hostilize o agente econômico e em que o Estado seja limitado a funções básicas, características menosprezadas no texto de 1988. No caso do Brasil, para Campos, o problema nunca teria sido de Constituição, mas de instituições …. e daquela deveria se esperar tão-somente “um documento enxuto – limitado à arquitetura do Estado, ao sistema tributário, às grandes opções de organização econômica e aos direitos e deveres fundamentais do indivíduo”.
No último dia 05 de outubro, por ocasião do aniversário de 33 anos da Constituição, assistiu-se a um festival de homenagens e congratulações à Lei nas redes sociais. Em alguns deles, podia-se ler alguma frustração: “por que não conseguimos produzir uma sociedade livre justa e solidária; por que não erradicamos a pobreza e as desigualdades regionais?” A Constituição de 1988, 33 anos depois, revela-se algoz de si mesma. As perguntas fundamentais não foram feitas no momento de sua formulação, e seguem sem serem feitas tanto tempo depois. A realidade contundente imperou, mas o discurso sedutor das utopias segue forte. Que falta faz Roberto Campos.